São Paulo, sábado, 22 de abril de 1995
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Terapêutica fútil

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
Abordamos anteriormente este tópico, cada vez mais debatido na literatura médica, e descobrimos com tristeza que neste país encontrou-se solução tupiniquim, absolutamente inadequada, mas consentânea com nossa cultura tropical de displicência de um lado e "deixa correr pelo outro.
Nos Estados Unidos da América e na Europa, existem normas claras e até embasadas por fórmulas que sugerem ao médico e à equipe de saúde quando parar, quando a terapêutica é fútil, quando o que está sendo tratado não é mais o doente e sim a angústia do grupo que o atende, ou quando a coisa passa a ser desumana.
Na verdade, tão cedo como na década de 50, o Papa Pio 12 estabeleceu com grande grau de lógica a diferenciação quase que tomista entre os esforços necessários, que têm de ser tomados no tratamento de doenças graves, e aqueles considerados por ele como extraordinários, sem constituírem obrigação do paciente ou dos médicos. Ele esclareceu também que não se trata de suicídio recusar os atos por último citados, mesmo quando valorizadas as implicações religiosas.
É claro que o limiar entre o ordinário e excepcional nem sempre é facilmente definível e pode ser mutável: situações hoje não-curáveis e não-tratáveis poderão vir a ser no futuro. É obrigação dos profissionais manterem-se perfeitamente atualizados a respeito dos progressos de cada área, definindo que nada mais há a fazer no "state of the art, no momento.
Mas qual a diferença entre o Brasil e os países desenvolvidos quando abordamos esta questão? É que aqui atitudes estão claríssimas: todas as diligências são adotadas, sem analisar se são úteis ou não, enquanto houver fonte pagadora disposta a financiar a maquinária que faz os trabalhos; na hora em que a origem do dinheiro reclama ou avisa que acabou o recurso, é impressionante a modificação de compostura das plêiades que cuidam dos pacientes.
Segundo nossa opinião, tal critério é provavelmente um dos piores imagináveis; o fato de haver custeador não tem muita relação com o fenômeno biológico que está ocorrendo no organismo doente e nem com a possibilidade de regressão eventual. Comumente o dispêndio fica por conta do Estado e aí, seguramente, ninguém preocupa-se com a validade das providências em curso porque, conforme conceito vulgarizado, se órgão público paga, o dinheiro cai do céu... Em outras ocasiões alguma empresa seguradora arca com os custos e sucede o mesmo.
Esquecemos que o Estado somos nós e que a sociedade como um todo desembolsa; no caso de seguros, os donos das empresas, quando gastam, sem dúvida aumentam o prêmio dos que usam seus produtos, de modo que não convém colaborar para que as taxas fiquem cada vez mais caras.
Enquanto há vida, há esperança: esse é o lema que orienta muitas pessoas. Todavia, afigura-se perigoso trocá-lo por nova concepção; enquanto há dinheiro, há esperança.

VICENTE AMATO NETO, 67, infectologista, é professor-titular e chefe do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP.
JACYR PASTERNAK, 53, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Molésticas Infeccionas e Parasitárias do Hospital das Clínicas e membro do Grupo de Transplante de Medula Óssea do Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

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