São Paulo, sábado, 22 de abril de 1995
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Escultora tenta dar forma humana ao caos

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Acabo de ler, numa coluna de jornal do Rio, que Yvonne Bezerra de Mello, nas próximas eleições para a Prefeitura do Rio, vai se candidatar. Ela diz, na nota, que está tratando de convencer seu partido, o PSDB, de que tem chances reais de se eleger.
Se tem ou não tem, não sei. Mas pode dizer ao PSDB que pelo menos meu voto já tem. Aliás, estou publicando esta intenção de voto porque, se algum amigo pessoal meu for candidato nas mesmas eleições, pode ficar sabendo que meu voto está amarrado: é de Yvonne Bezerra de Mello.
Não conheço Yvonne pessoalmente. Sei que ela é escultora, casada com Álvaro Bezerra de Mello, dos hotéis Othon, e que, se meninos de rua lhe telefonarem no meio da noite pedindo socorro porque estão sendo exterminados pela PM ou por algum bando de burgueses cariocas, Yvonne salta dos lençóis de linho, pede desculpas ao marido, aos próprios filhos e vai pessoalmente socorrer esses filhos que assumiu na rua.
Porque esses meninos têm o telefone dela e a recomendação expressa de lhe telefonarem a qualquer hora que seja, em caso de perigo. Como o perigo da noite de 22 de julho de 1993.
Passava da meia-noite e meia e Yvonne estava na sala, quase desligando a televisão para ir dormir. Do outro lado da linha a voz assustada do Bocão: "Tia, mataram nós todos". "Não brinca comigo, Bocão, é tarde pra cacete. Quem matou quem?" "O extermínio, tia, vem logo! Vem logo, tia!" Eram os meninos da Candelária, na noite da chacina. O motorista Airton tirou o carro da garagem, e lá foi Yvonne para o horror da Candelária.
Naquela noite torpe, de pecado sem expiação possível, o Rio se comoveu, o Brasil inteiro se indignou, os jornais, revistas e TVs se mobilizaram. Como sempre. Em seguida, também como sempre, foram todos, ou fomos todos cuidar de nossos afazeres. Só Yvonne não desliga, não pode desligar. Tia, vem que Fulana (alguma menininha de 13 anos) vai dar à luz e não tem onde deitar. Come-Gato (homossexual preto, sultão de viadinhos da sarjeta) levou uma surra e está desacordado. Lá vai Yvonne.
Seu livro "As Ovelhas Desgarradas e seus Algozes" (editora Civilização Brasileira, prefácio de Enio Silveira), sem pose, sem fricotes, é de uma beleza espiritual arrasadora. Não parece livro de brasileira. Ou brasileiro. Yvonne nasceu no centro do Rio, mas parece uma militante inglesa, francesa. Não sofre de nossa caridade puramente mental, anêmica.
Eu morei anos na Inglaterra, um na França. Não me lembro de, em Paris ou Londres, ver um gatinho só na rua, miando, abandonado. Em dois tempos aparecia alguém, descia alguém de um apartamento, uma velhinha saía de alguma portaria para ver o que era, para conversarem e para alguém levar o bichinho.
No Rio há, no caminho de quem vai para casa depois do cinema, cinco, dez, vinte crianças, algumas de fralda, andando a esmo pelas calçadas, e ninguém, nenhum de nós, parece estar vendo nada. Aquelas crianças parecem esperar a Comlurb. Quando vierem buscar os latões de lixo hão de levar também, para alívio nosso, aquele lixo vivo, animais nojentos, sem gaiola e sem jaula, que nos emporcalham a soleira da porta dos edifícios.
Outra virtude extremamente "estrangeira" do esplêndido livro de Yvonne é que ela, como um Jonathan Swift, nos torna conscientes de que somos, por mais que tomemos banho e nos perfumemos, meros sacos de merda e de mijo. Basta imaginarmos, com o impiedoso auxílio de santa Yvonne, em que nos transformaríamos se passássemos a morar na rua, ao relento, longe do chuveiro e da latrina. Ela sabe, ela que tem dormido na rua e se lavado no chafariz da praça.
Passo a citar o livro: "Vocês vão ter que se virar. Aqui é que não pode. As crianças pequenas podem fazer em cima de um jornal. (...) Me dei conta de como essas coisas tomam proporções imensas num lugar público. Fazer cocô e pipi, não ter gavetas para guardar roupas, tomar banho e cortar unhas (...) sem falar na menstruação das meninas".
"(...) É duro ver dentes bons e brancos se deteriorarem em seis meses de rua. Quando o grupo passou dos 25 começou o problema dos piolhos, da sarna e dos chatos. E o problema das necessidades. Onde fazer? Na areia? No mar? (...) Resolvi que ia dormir na rua com eles. Era tão importante quanto ter cheirado cola com eles. Esse grupo era ideal porque as crianças eram pequenas. No grupo das maiores, se alguém soubesse iria dizer que eu estava fazendo sacanagem."
"(...) Senti vontade de fazer xixi. 'Tia, se quem não gosta de preto for preso, não tinha mais gente na rua'. 'Explorar é você engraxar um sapato e ter que dividir o dinheiro que você ganhou com a Polícia ou alguém mais da rua'. 'Eu sou de menor. O Estatuto me protege'."
Agora cito, na página 144, esta cena de Copacabana: "Atores: crianças sentadas no chão, estudando, e eu sentada no banco. Fecha o sinal, pára um Santana vermelho com uma mulher de óculos. Faz sinal para o motorista encostar o carro. Salta e vem na minha direção. 'Você é aquela que ajuda esses bandidos? Você sabe o que merece?' E me deu a maior cusparada na cara, bem ali, na frente de todo mundo. Mas encheu a boca mesmo".
"O cuspe escorreu pelo meu nariz. Ela ficou me olhando em atitude de desafio. Começou a falar para as babás e as pessoas que estavam ali. E saiu, satisfeita da vida, achando que tinha ganho o dia. Ela, um dos muitos justiceiros, donos de mesa farta. Olhei à minha volta, limpei o cuspe e continuei a aula."
O Rio chique cospe em Yvonne sua baba de ódio. Temo que São Paulo esteja produzindo também essa baba. Acabo de receber "Esquinas", um jornalzinho da Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero, registrando 5.338 casos de violência contra menores na Paulicéia em 1994. Estou convencido de que há madamas do ódio em todas as grandes cidades do Brasil. E só uma Yvonne, que é do Rio. Para prefeita do Rio, tia Yvonne Bezerra de Mello.

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