São Paulo, sábado, 22 de abril de 1995
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Lyon recria a mágica dos irmãos Lumière

CARLOS DIEGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Às vésperas de começar meu 13º filme, tão brasileiramente poucos para carreira de mais de 30 anos, não poderia receber estímulo maior que o convite para as festas de celebração do centenário do cinema, em Lyon e Paris.
Os ministérios franceses da Cultura e Exterior patrocinavam e o Instituto Lumiére, presidido por Bertrand Tavernier, organizava um fim-de-semana em Lyon, cidade ao sul da França, onde os irmãos Louis e Auguste Lumière inventaram o 'cinematógrafo'.
Cerca de 60 cineastas de todo o mundo estavam sendo convidados a se juntar a seus colegas franceses, para a comemoração que teria sequência em Paris, nas segunda e terça-feiras seguintes, com um grande colóquio internacional, do qual participariam também intelectuais e artistas de outras áreas, reunidos para discutir um tema geral -"O Cinema em Direção ao Seu Segundo Século".
Outro brasileiro convidado, Nelson Pereira dos Santos avisara que não poderia ir. Bom sinal: estava finalizando seu último filme, um longa-metragem envolvendo a história do melodrama no cinema latino-americano, encomendado pelo British Film Institute e a BBC, como parte de uma série sobre o centenário do cinema, cujos episódios são assinados por Martin Scorsese (USA), Bernardo Bertolucci (Itália), Volker Schllondorf (Alemanha), e outros.
Curiosamente, Lyon sempre foi uma cidade conhecida pela beleza de sua luz. Ou, pelo menos, assim pensam todos os "lyonnais" que tentam nos convencer disso. Se somarmos a isso o nome dos inventores ("lumière", em francês, quer dizer luz), podemos concluir que havia uma certa predestinação nos fatos que culminaram naquele 19 de março de 1895, no bairro de Monplaisir que, por sua vez, pode ser traduzido por "meu prazer".
A rua para a qual davam os portões da fábrica Lumière, no entanto, chamava-se prosaicamente de São Victor, mas há muito tempo que foi rebatizada oficialmente de Rue du Premier-Filme (Rua do Primeiro Filme).
Foi ali, por trás de uma janela da casa número 25, que os irmãos Lumière esconderam seu aparelho e registraram a saída dos operários de seu pai, Antoine Lumière, pintor acadêmico e dono da fábrica de placas fotográficas.
Hoje, onde se encontravam os diferentes edifícios da fábrica, existe um parque público. Do passado histórico, resta apenas o hangar de onde sairam os operários dos Lumière, o primeiro "set" de filmagem, tombado pelo Ministério da Cultura.
Dominando o parque, se encontra o imponente Chateau Lumière, propriedade da família, que hoje pertence ao Estado francês e abriga o Instituto Lumière, que cuida da glória de seus filhos famosos.
No castelo, estão instaladas, além da sede do Instituto, suas exposições permanentes de aparelhos, autocromos, fotografias, cartazes, uma biblioteca razoavelmente grande, uma pequena sala de vídeo onde se pode ver os filmes dos Lumière.
Na manhã de nossa chegada a Lyon, passeando pelo castelo na companhia de outros impressionados cineastas, vejo um rosto feminino esculpido em gesso contra o leste, olhando para onde nasce o glorioso sol de Lyon.
Chamo a atenção de Jerry Shatzberg e identificamos a pele fina, os olhos expressivos, a face impressionante que, no século seguinte, faria a fama da diva Bette Davis, o rosto da jovem Davis de, digamos, "A Floresta Petrificada", de Archie Mayo.
Não sei dizer se devíamos tomar a aparição em gesso por mais uma marca da citada predestinação. Ou se era mesmo um sinal dos deuses, a propósito da natureza dos rostos que seriam iluminados pelo sol que nascia em Lyon.
Stephen Frears declara que, como todo inglês, é muito ignorante e não sabia de metade da história que está sendo contada ali.
Robert Parrish, o mitológico montador de John Ford e, depois, ele mesmo diretor, diz a uma televisão que, quando começou no cinema, pensava que este era uma invenção dos grandes de seu tempo, como Ford e De Mille.
André de Toth, o mais velho de todos nós, nascido em 1900, apenas um pouco depois do cinema, diz a verdade e faz todo mundo rir: "Quero aproveitar a oportunidade para agradecer a Monsieur Lumière por todos os filmes que pude fazer e, sobretudo, por todo o dinheiro que ganhei na minha vida".
À noite, somos convidados ao maior teatro da cidade, com mais de 5.000 lugares, onde será projetada uma seleção de filmes recuperados dos irmãos Lumière.
Stanley Donen, o diretor americano de "Cantando na Chuva", um dos mais aplaudidos pelo público presente, se dirige à platéia e diz que vai agradecer a recepção com o que sabe e gosta de fazer. E sapateia durante alguns minutos, um singelo "tap-dancing" que tem por único fundo musical uma estrondosa ovação.
Diante de seus filmes, fica muito claro que Louis Lumière (mais do que Auguste, ele era o "autor" deles) não foi apenas o inventor de uma curiosidade da mecânica ótica ou de um mero "sideshow" de parque de diversões, como foi o "quinetoscópio" de Thomas Edison; mas, acima de tudo, um precursor daquilo que hoje chamamos de cineasta.
Em seus pequenos filmes, há sempre uma idéia de "mise-en-scène", um artifício de roteiro, um gosto pelo enquadramento, uma consciência da novidade misturada à angústia de sua dramatização. Há neles surpresas, humor, lirismo e até uma certa pitada do barroco que Cabrera Infante afirma ser essencial ao cinema.
Mesmo "La Sortie des Usines Lumière" (A saída da Fábrica Lumière), o primeiro filme, parece uma construção elaborada de idéias e ações que não tem nada de "espontâneo" ou documental.
Isso para não falar dos filmes de "ficção", como as duas versões da comédia "L'Arroseur Arrosé" (O Regador), o filme de ação "La Bataille de Neige" (A Batalha de Neve), o lirismo dramático de "Le Bateau" (O Barco).
Subitamente, sobre a paisagem de Lyon às margens do rio Rhône, nos maravilhamos com longo e belo "travelling", cheio de formas e massas em primeiro plano, duas décadas antes de D.W. Griffith.
Segundo Godard, "ao contrário de Méliès, o que interessa a Lumière é o extraordinário que se encontra no ordinário".
O que estávamos, então, comemorando sob o rótulo formal de um centenário? A boa idéia de reproduzir imagens da natureza em movimento é bem mais antiga; a primeira notícia que temos dela, está nas paredes de uma caverna pré-histórica, em Altamira, onde um muito longínquo antepassado de Lumière e de nós todos, decupou o movimento de um touro.
Toda a programação estabelecida pelas autoridades francesas, se articula em função de um clímax previsto para o dia 28 de dezembro. Naquele dia, há cem anos atrás, os Lumière promoveram a primeira sessão pública de seu invento, no salão de bilhar aos fundos do Grand Café, no Boulevard des Capucines, Paris.
Foi ali que tiveram o que talvez tenha sido sua melhor idéia, a grande invenção -colocar uma caixa registradora entre a rua e a sala de exibição, pela qual o público devia passar. Nos dispomos sempre a gostar mais daquilo que pagamos para ver.
A novidade do evento não se restringiu ao tíquete de ingresso; como se sabe, comerciantes de outros ramos, mal ou bem-sucedidos, têm sempre essa mesma idéia.
Mas aquela era a primeira vez que imagens em movimento seriam projetadas sobre uma tela e vistas, simultânea e coletivamente, por um mesmo público.
Bem, é verdade que, naquele primeiro dia, os Lumière venderam apenas 33 ingressos. O cinema já começava com um pequeno fracasso de bilheteria. De todo modo estava inaugurada uma nova forma de espetáculo e não seria absurdo se passássemos a comemorar o dia 28 de dezembro como digamos, o "Dia do Exibidor".
Antes dessa, os Lumière haviam feito outra sessão para platéia restrita e seleta, no dia 22 de março, três dias depois da primeira filmagem, uma espécie de pré-estréia ou "sneak preview", precursora de nossas "sessões para a classe".
Naquele dia, eles apresentaram o resultado de seu invento à Comissão de Incentivo à Indústria Nacional, submetendo-o à apreciação dela, ainda com o nome de "quinetoscópio de projeção". Esse poderia ser, por exemplo, o "Dia da Crítica".
Hoje, há nuvens no céu primaveril e frio no parque em frente ao castelo. Os técnicos do Instituto prepararam a primeira câmera, a mesma que rodou o primeiro filme (girando a 16 quadros por segundo), reproduziram o primeiro negativo, igual ao que imprimiu o primeiro filme (com apenas uma perfuração redonda, em cada lado do fotograma) e agora estão a postos, à janela do número 25, tão emocionados quanto nós que, daqui a pouco, sairemos pelo portão daquele hangar histórico, no papel dos operários da fábrica Lumière, os primeiros atores do cinema.
Às 11 horas, porém, o céu escurece, a chuva ameaça cair e, antes que a filmagem se torne inviável, Thierry Frémaux, secretário-geral do Instituto Lumière e idealizador do evento, ordena que a câmera comece a rodar.
Uma hora antes de o cinema completar seu primeiro século de existência, saímos todos pelo portão do hangar, os operários de outra usina, dita de sonhos, inventada pelos irmãos Lumière: Stanley Donen (EUA), Mrinal Sen (Índia), Robert Parrish (EUA), Karel Reisz (Inglaterra), Andrei Konchalovski (Rússia), Youssef Chaine (Egito), Souleymane Cissé (Mali), Abbas Kiarostami (Irã), Jerry Shatzberg (EUA), Stephen Frears (Inglaterra), Aki Kaurismãki (Finlândia), Miguel Littín (Chile), os irmãos Taviani (Itália), Merzak Allouache (Argélia), John Berry (EUA), John Boorman (Inglaterra), James Gray (EUA), Nikita Mikhalkov (Rússia), Francesco Rossi (Itália), e dezenas de outros diretores do mundo todo, além dos franceses Claude Miller, Jean-Jacques Beinex, Claude Sautet, Jean Rouch, Jacques Deray, Diane Kurys, Claude Lelouch etc.
A população de Lyon aplaude a cena repetida em dois "takes", no dia escuro em que se comemora o nascimento da luz mágica que ilumina, hoje, no mundo inteiro, 70 milhões de salas de exibição, 1 bilhão e meio de aparelhos de televisão, 800 milhões de videocassetes. O maior espetáculo que o século teve para nos oferecer.

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