São Paulo, sábado, 22 de abril de 1995
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A banalidade da violência cotidiana

SÉRGIO ADORNO

"O governo deve entender que não se trata ali somente de questões políticas; a essas questões políticas estão associadas questões sociais, e as questões sociais são de grande alcance, são de grande perigo." Sentenciada há mais de um século, por ocasião da Revolução Praieira em Pernambuco (1848), a advertência de Nabuco de Araújo às elites políticas locais não parece ter surtido efeito nesta sociedade que se pretende moderna e democrática.
De fato, o perigo persiste. Os fatos estão aí, transparentes. Não há como ignorá-los. As notícias disseminam-se com rapidez incontrolável e com cores muito fortes: textos e imagens, depoimentos e closes revelam a crueza da sucessão de recentes chacinas na grande São Paulo e na periferia do município. Diante da explosão de litigiosidade que capturou amplos segmentos das classes populares, tais fatos não chegam a surpreender, exceto a constância dos acontecimentos, sua intensidade e concentração em certas áreas da região metropolitana, o idêntico perfil das vítimas e dos possíveis agressores, a generalização de um mesmo "modus operandi".
Mais surpreendente, no entanto, é verificar a desorientação das autoridades policiais. Na condução de suas investigações, satisfazem a si próprias com explicações genéricas, lançando todos os casos na vala comum da criminalidade, como se tudo invariavelmente não resultasse senão das disputas entre quadrilhas pelo controle do tráfico de drogas.
É essa desorientação reveladora do colapso da segurança pública neste Estado. Seria injusto admitir o completo descaso do poder público para com o recrudescimento da violência a que se assiste desde meados da década passada. Sucessivos governos estaduais, desde a reconstrução democrática, têm procurado equipar as agências policiais com modernos recursos, materiais e humanos, bem como ampliar a oferta de vagas no sistema penitenciário. No entanto, por mais desejáveis que sejam tais iniciativas, permanecem os grandes estrangulamentos: crescimento das mortes violentas, sobretudo de jovens, exacerbação do sentimento de insegurança entre os cidadãos, superpopulação carcerária, violência policial. Em outras palavras, as medidas têm se revelado inócuas.
O colapso decorre, em parte, da sobrevivência de uma concepção de segurança, herdada do regime autoritário, da qual os governos estaduais democráticos não foram capazes de se desvencilhar. O eixo dessa concepção reduz a litigiosidade social a um conflito entre bandidos, trata a segurança pública como mero controle repressivo do crime e limita a solução dos problemas a um elenco técnico de estratégias e táticas de combate armado.
Os resultados das políticas públicas de segurança, norteadas por essa concepção, colocam em suspenso a universalidade da cidadania nesta sociedade. O direito à segurança converte-se em direito ao privilégio, donde a proliferação das empresas de segurança privada. Na periferia de uma grande metrópole, como São Paulo, onde predominam classes populares, a insegurança é quase absoluta. Os conflitos envolvendo trabalhadores, traficantes, quadrilhas e policiais somente podem convergir para a supressão física dos adversários, quando está ausente o mundo público das leis e das instituições como instrumento de pacificação social.

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