São Paulo, sábado, 22 de abril de 1995
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O Gomes do angu

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Eu o conheci, logo nos inícios, quando lançou o seu angu, que era então anônimo e noturno. Ele farejou que, depois de certa hora, nada havia ali pela praça 15 para dar de comer aos heróis que trabalham no Rio até tarde e vão para Niterói, cansados, amarelos, sem janta.
Armou sua barraquinha, iluminou-a com um lampião de querosene e serviu um angu à baiana reforçado, coisa de sustância, num prato de ágate, pimenta à vontade.
Pegou. Vinha gente fartar-se de seu angu. Eu detesto comida baiana, odeio especificamente seu decantado angu, mas acompanhei meu pai muitas vezes, que era louco por extravagâncias fora de hora.
Saíamos do "Jornal do Brasil" já noite alta, tudo fechado, de longe víamos seu lampião esfumaçado e sentíamos o cheiro adocicado de sua pimenta. Ao contrário do filho, meu pai era de relações fáceis, tornou-se amigo dele, muitos outros fizeram o mesmo, o angu virou programa e referência.
Virou grife, também. Uma noite, enquanto levava meu pai para casa, ele me contou que o Gomes não era Gomes nem baiano era, como se poderia supor. Era Vasconcelos e vagamente português, casara-se na Paraíba com uma Severina que lhe ensinara o macete do angu.
Foi desse Gomes (ou Vasconcelos) que ouvi, pela primeira vez, uma alusão à "modernidade". Ele já começara a enfrentar concorrência, gente sem imaginação copiava-lhe a barraca e o angu com aquilo que ele considerava a modernidade: o lampião não era de querosene, mas de carbureto, iluminava as especiarias servidas com uma luz azulada, asséptica, fria.
Ele permaneceu fiel ao lampião. A fumaça do querosene impregnava-se nos molhos, dando-lhes aquele algo mais que era sua marca, seu diferencial, sua glória. Preferiu perder o mercado, vendeu o nome que hoje é explorado por uma multinacional especializada em sanduíches medíocres e refrigerantes enlatados. Deve ter morrido pobre. Apesar de tudo, seu nome ficou na cidade, imortalizado em barraquinhas sem gosto e sem cheiro.

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