São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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O Plano Real na encruzilhada

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA

Inflação em alta, equilíbrio externo em aberto e expectativas em baixa. As sirenes estão tocando. A deterioração do quadro macroeconômico no primeiro trimestre do governo FHC resulta da combinação de dois fatores básicos: o esgotamento da engenharia financeira que permitiu a drástica redução da inflação nos últimos nove meses e a absoluta falta de resultados tangíveis na conquista dos fundamentos da estabilidade monetária.
O grande mérito do Plano Real que elegeu FHC não foi só conseguir derrubar a inflação sem recorrer ao congelamento de preços, confiscos ou violação de contratos. Foi conseguir tudo isso sem precisar contar com o trabalho árduo e prévio da obtenção de uma base sólida de reformas estruturais que sustentassem a estabilidade de preços em caráter duradouro. Em se tratando de planos de estabilização, poucas vezes se terá conseguido tanto com tão pouco.
Por um breve momento, parecia que o caminho da moeda estável no Brasil não precisaria passar pelo "sangue, suor e lágrimas" de uma faxina grossa do setor público. Por que não seguir pelo atalho alegre e suave da grande festa de consumo? Se nos anos 50 criamos a mundialmente aclamada "teoria da inflação produtiva", desta vez estivemos bem perto de outra aberração do gênero -"a estabilização como festa de consumo". Como diria Samuel Johnson, "a esperteza é sempre mais fácil que a virtude, pois ela toma o caminho mais curto para tudo".
A engenharia financeira por trás deste feito -a construção de uma cobertura sofisticada e atraente num edifício condenado- reuniu três elementos básicos: 1) aumento de arrecadação e criação do Fundo Social de Emergência, para tapar o rombo do gasto público (só a despesa com pessoal da União subiu de R$ 16 bilhões para mais de R$ 31 bilhões anuais sob Itamar); 2) o golpe de mestre da URV e da desindexação pela via da plena indexação; e 3) a adoção da âncora cambial, com o real sobrevalorizado, e a aceleração da abertura comercial.
Na melhor das hipóteses, este conjunto de medidas garantiria uma estabilidade de superfície (como a verificada de julho para cá) e funcionaria como uma espécie de ponte ou salvo-conduto até a conquista e implementação dos fundamentos da moeda estável -reforma tributária e ajuste fiscal de longo prazo, reforma previdenciária, privatização e redução do estoque da dívida interna, restrição orçamentária firme para o setor público como um todo e maior disciplina de mercado para o setor privado.
O problema, contudo, é que a engenharia financeira do Real está visivelmente esgotada e isto está ocorrendo muito antes que os fundamentos da estabilização tenham se materializado ou sequer surgido no horizonte. A política macroeconômica parece cada vez mais descaracterizada e pendurada nas emergências do momento, enquanto as reformas constitucionais e medidas de fundo, como a privatização dos bancos estaduais sob intervenção do Banco Central, patinam e atolam no mais escabroso varejo da pequena política nacional.
Na prática, o que acabou encurtando a sobrevida da fase "conto de fadas" do Real foi a mudança no ambiente externo deflagrada pela crise mexicana. Ao contrário de países como Chile e Colômbia, que apesar de latino-americanos atravessaram a turbulência incólumes, no Brasil o "efeito tequila" encontrou solo fértil -o real sobrevalorizado, a economia aquecida e o setor externo em trajetória fortemente deficitária.
Diante da reversão do fluxo de capitais e do imperativo do ajuste externo, a equipe econômica acabou "flexibilizando" -para usar a palavra favorita do novo governo- a política cambial, aumentando as tarifas de importação de bens de consumo duráveis e elevando brutalmente as taxas de juros.
Essas medidas provavelmente atenuam o desequilíbrio externo, mas ao custo de sacrificar em boa medida a lógica da engenharia financeira que vinha mantendo a inflação baixa. A ponte rachou e encolheu. Tem uma lacuna no meio do caminho.
A principal fonte de incertezas no curto prazo, como bem apontou o professor Mário Henrique Simonsen, em seu artigo de domingo último na Folha, continua sendo o câmbio. A banda cambial estreita definida pelo governo não é compatível com as taxas de inflação doméstica previstas pela própria equipe econômica para os próximos meses. Isto é fato hoje. Bastam três meses de inflação em torno de 2,5% ao mês para anular totalmente a desvalorização de 8,14% implícita no teto da correção cambial feita em março.
É uma conta simples, mas que fala mais alto do que qualquer promessa oficial de não mexer no câmbio e manter o teto da banda em R$ 0,93 por "muito e muito tempo". Negativas como esta fazem lembrar a velha máxima do jornalismo inglês: "Não acredite em nada até que tenha sido oficialmente negado". Não seria melhor encarar desde já o problema, em vez de fingir que ele não existe e acabar tendo que enfrentá-lo, sob tiroteio cerrado, mais tarde?
Quanto mais avança o estudo da economia, mais se descobre e se reconhece o papel central das expectativas nos processos econômicos. Expectativas governam comportamentos e estes, por sua vez, determinam resultados. A deterioração das expectativas em relação ao Plano Real reflete acima de tudo a percepção de que a condução da política econômica de curto prazo perdeu a consistência e o projeto reformador do governo FHC está devagar quase parando.
Para reverter este quadro e garantir o sucesso do Real daqui para frente, o governo precisa recuperar a iniciativa e mostrar que tem um programa de ação claro e exequível que ele é capaz de cumprir. Está mais do que na hora de o Executivo gerar um fato positivo de peso na consolidação do Real.
As propostas que vêm sendo veiculadas pela equipe econômica têm sido feitas de forma dispersa e desarticulada, sem que se possa ter uma visão clara do que elas representam em conjunto ou do grau de compromisso das autoridades com sua execução. Promessas vagas e expedientes temporários não são programa de governo.
Outro problema que parece estar se agravando é a falta de transparência sobre informações cruciais para a formação de expectativas, como nível de reservas cambiais, execução e previsão orçamentária, estoque e serviço da dívida interna, detalhamento do corte de gastos, déficit da Previdência, cronograma de privatizações etc.
Um esforço sério do governo de tornar as informações relevantes mais claras e rapidamente disponíveis ao público seria uma lufada de ar fresco para desanuviar a atmosfera. Se a verdade às vezes dói, a opacidade é uma estufa infalível de incertezas, rumores e temores infundados.

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