São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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Nem os diamantes são para sempre

CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA

É problemático afirmar que o funeral de Ayrton Senna foi mais espetacular do que o de Tancredo Neves. Na ausência de um funerálmetro para medir os acontecimentos, dá-se de barato que foram os maiores de nossa história, seguidos pelo de Getúlio Vargas, em outro contexto e com outro significado.
Tancredo representou a esperança que mais uma vez era arrancada mais do imaginário do que da vida do brasileiro médio. Ayrton Senna era a realidade de um triunfo nacional dura e escassamente conquistado. A última glória que lavara a alma do brasileiro tinha sido o tri em 1970. O tetra seria meses depois da tragédia. O deus das pistas e estádios escreve torto por linhas certas, tal como o Deus da vida e da morte.
Senna absorveu, talvez contra a própria vontade, as aspirações de glória que, na hora do lobo, cada um de nós tem o direito de acalentar. Era jovem, rico, bem sucedido em tudo o que se metia. Eleito da Fortuna, era muito mais do que um réles campeão de F-1. Era um mito. Vivêssemos na antiguidade clássica, seria um deus com direito a altar e culto.
Esse saudável e potente paganismo helênico seria derrubado pela sofrida purgação judaico-cristã, que nos lembra constantemente a inevitabilidade de morte, e, pior do que isso, a transitoriedade de tudo. "Sic transit" -tudo passa.
Não sou seguro em datas, mas aí pelos anos 20 no Brasil houve um mito que, guardadas as proporções de tempo, população e cabeça, seria um equivalente, ou, na pior hipótese, um antecessor de Senna.
Nem lembro mais o seu nome civil. Para todos os efeitos, era o Jaú -um aviador que ameaçou a travessia do Atlântico- não estou certo, talvez não tenha ameaçado tal e tanto, mas tentou façanha equivalente.
Acho que ele criou (ou ajudou a criar) a expressão: morreu na praia. Não chegou a concretizar a proeza, o avião caiu, mas o orgulho nacional estava tão carente de feitos que foi como se tivesse conseguido.
O Brasil inchou o peito. Povo, autoridades, clero e laicato, santos e biltres, a nação se ergueu, varonil -e acho que foi aí que descobriram o óbvio: varonil rimava com Brasil.
Na minha infância, o mito já declinava. Mesmo assim, Jaú era um divisor de águas, uma hégira: a história se dividia em antes e depois do Jaú. A Inconfidência Mineira, por exemplo, era de antes. Os filmes de Mazzaropi de depois. Hoje, não fosse o nome da cidade homônima, acho que somente eu ainda teria vaga lembrança desse herói nacional. "Sic transit".
É duro pensar que Senna talvez tenha o mesmo destino. Os mitos também envelhecem. Em termos de hoje, seria absurdo imaginar uma criança em qualquer recanto brasileiro, perguntando ao pai ou ao professor: "Ayrton Senna? Quem foi?".
É cedo para pensar nesse dia. Mas quando chegar, que seja solene e wagneriano como o funeral de um deus viking.

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