São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Morte tira o Brasil do noticiário favorável

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O automobilismo tem tudo para não ser um esporte popular. Não é fotogênico, pois as câmeras dificilmente captam as habilidades que o caracterizam. Tampouco são capazes de registrar suas emoções. Compare-se a câmera-lenta de um drible à de uma ultrapassagem. Ou um close de um goleador à frieza do capacete do piloto. Nada mais melancólico do que o solitário vencedor no pódio.
Tampouco é um esporte que possa ser emulado. Um bom passe, uma cortada, uma cesta são experiências acessíveis a qualquer mortal. Mas poucos sabem de primeira mão o que é pilotar um veículo a 300 km/h.
Daí o espanto diante do luto generalizado que envolveu a morte de Ayrton Senna. Contribui para o espanto a constatação de que se tratava de um luto particularmente feminino, pois Senna, enquanto vivo, não parecia ser considerado um símbolo sexual.
Houve, sobretudo à esquerda, quem atribuísse a consternação generalizada à mídia. Ou seja, retomou-se a teoria da conspiração televisiva para manipular as consciências. Tal explicação, como sempre, nada explicava. A TV, mais do que influenciar os sentimentos populares, sucumbiu a eles.
Há, contudo, um detalhe paradoxal. Só existe no automobilismo um tipo de episódio indiscutivelmente fotogênico e inteligível, capaz de competir com uma cobrança de pênalti, feito de encomenda para as câmeras, propiciador, sem perder seu interesse, de infinitas repetições. Esse episódio óbvio é um acidente, de preferência fatal. Quando sucede, o automobilismo realiza todo o seu potencial de espetáculo.
A irrepetibilidade da morte do piloto trouxe assim à consciência coletiva algo que suas vitórias ou derrotas sucessivas, tão repetitivas quanto as tediosas voltas nos circuitos automobilísticos, não conseguiram. A constatação de que o piloto era o único -e último- símbolo positivo de que o país dispunha para consumo interno e externo.
O público feminino, mais ávido para o luto e mais sensível às aparências, percebeu as dimensões da perda. Pois, morto Senna, o país abandonava qualquer nicho favorável do noticiário mundial, continuando a frequentá-lo enquanto país da destruição das "rain forests", do masssacre dos meninos de rua etc.
Se o país reduz a inflação, isso não é "positivo", mas a compensação de um fenômeno negativo. Não rende, em termos de imagem e auto-imagem -principalmente quando esta se encontra abalada- a pequena alegria da qual decorre a indispensável amnésia temporária. Senna era importante porque corria por fora, num noticiário diferente -o esportivo- que propiciava ao Brasil lugar para conquistas positivas. É o fim disto que, há um ano, foi chorado por tantos e, desde então, esquecido por quase todos.

Texto Anterior: Nem os diamantes são para sempre
Próximo Texto: Quero dar detalhes de cada prova da categoria
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.