São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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Hegel filosofa sobre a essência da caneta

OLGÁRIA CHAIM FÉRES MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "Como o Senso Comum Compreende a Filosofia", um escrito de juventude, Hegel se propõe responder a seu contemporâneo Krug, representante emblemático do "senso comum filosófico". Propõe-se em termos, pois considera seu contendor -que sucede Kant na Universidade de Kõnigsberg- o próprio "non sense" realista.
O interlocutor, à primeira vista, é inocente: manifesta perplexidade frente às filosofias do idealismo transcendental, em particular as de Schelling, Hegel e Fichte, dando a entender que o Criticismo não passa de esquizofrenia da Razão quando diferencia Eu empírico e Eu transcendental.
Eis o que inviabilizaria explicar as "simples coisas", aquelas dadas, ou melhor, pré-dadas; ingênuo em seu naturalismo, Krug adere à existência de seres e objetos, ignora a consciência que lhes confere existência e inteligibilidade. Eis por que solicita a Hegel deduzir, se puder, das alturas do Transcendental, a pena de escrever de sua caneta, tão óbvia quanto útil para aquele que escreve. Má-fé principial, observaria Hegel, já que está de antemão convencido de que "nenhum idealismo no mundo faria ao menos a tentativa disso".
Essa consciência empírica abrange "tanto os gatos quanto a pena de escrever do Sr. Krug" e, se fosse a única maneira do estar-no-mundo, "teria o poder de transformar o público totalmente inculto em público filosófico". Tarefa desde logo irrealizável, pois toda filosofia é, a seu modo, Transcendental e Crítica, procurando a gênese e o modo de produção do conhecimento das coisas "que são enquanto são, das que não são porque não são".
Xenófanes, o eleata, partia do conceito de Ser para desmitologizar as forças naturais; Platão construiu a Teoria das Idéias, revisitada, em seguida, por seu discípulo Aristóteles. No mundo moderno, Descartes converte o dogmatismo escolástico em mera opinião, distante da evidência do verdadeiro e da incoerência do falso. Leibniz criticou o empirismo, Kant a Leibniz e Hume, Hegel a Kant, Marx a Hegel. Em sentido transcendental, bem entendido.
Krug e sua caneta significam mais e menos do que pretendem. Menos: a interrogação disfarça-se em diálogo, pois formula, ao mesmo tempo, a questão e a resposta. Mais: a pena da caneta não comporta dedução transcendental dado seu pressuposto tácito: a cisão entre natureza (e seus objetos "concretos") e o espírito (as produções dotadas de sentido no mundo da cultura).
A interrogação de Krug parte da caneta solipsista, isolada em seu particularismo contingente. É conhecido o nome atribuído por Hegel à imediatez abstrata, atitude própria a Krug: "impotência da Natureza". Impotência, pois: a que finitiza o infinito, absolutiza o contingente, separa o singular do universal, o eu e seu outro: "se o Sr. Krug tivesse a menor noção (...) daquilo que é em geral e no presente momento o interesse da filosofia (...), a saber, recolocar Deus absolutamente no topo da filosofia como o único princípio essendi e cognoscendi, depois de tê-lo posto, por tempo demais, ao lado de outras finitudes, se tivesse a menor suspeita disso, como lhe poderia passar pela cabeça exigir do idealismo transcendental a dedução de sua pena de escrever?.
Para compreender a natureza do Absoluto, seria recomendável refletir acerca da essência dos seres da natureza e das manifestações do Espírito do Mundo (as personagens e os acontecimentos históricos "factuais", "fortuitos"). Sem o que está vedado ao Sr. Krug alcançar o movimento interno necessário ao advento do "dia espiritual do Presente".
É próprio à consciência da "certeza sensível", psicológica desconcertar-se com o ponto de partida filosófico: "a matemática, a física e o idealismo", observa Hegel, "ao se perguntarem o que se tem de pensar, não se voltam para essa consciência empírica frequentada por cachorros e gatos e pela pena de escrever do Sr. Krug". Por desconhecer o coeficiente mínimo da Vida do Espírito, Hegel sugere a Krug "deixar de exigir a dedução de sua pena de escrever, bem como de se preocupar com o idealismo".
Não vivemos no universo das blosse Sachen. Simples coisas já constituem uma identidade, embora parcial, com o Absoluto -são seus existentes periféricos. O saber transcendental não é sobrevôo ou imanência. É coesão no afastamento, coincidência divergente-pensamento. Pois deve sempre haver ação da inteligência na qual o limite parece contigente, sem fundamento, "tanto para o Eu quanto para a coisa".
A "pena da caneta" não foi, para Hegel, uma simples questão. Favoreceu interrogações sobre a metafísica dualista, aquela que separa causalidade e liberdade, determinismo e livre-arbítrio, contingência e necessidade. O que solicitou a dialética mediadora das essências e das aparências, para mostrar de que maneira a razão do aparecer é a mesma do desaparecer. A dialética não é um ponto de vista a mais sobre as coisas. Para Hegel, consiste na tentativa de ultrapassar a arbitrariedade dos pontos de vista, ao explicitar a contingência do ser contingente, ancorando-a na exterioridade da natureza e na negatividade do finito individual.
O contingente se faz valer no reino do Espírito, na transformação de sua contingência em necessidade imanente da criação: "enquanto a natureza se desperdiça em múltiplas espécies de 'papagaios' e 'Verônicas' que a ilustram com indiferença, a obra espiritual cintila para sempre com o brilho que lhe confere o Espírito que nela aparece" (posfácio de Jean-Marie Lardic).
Krug pressentiu, de alguma forma, que o Absoluto não fora provado. Nem o será. Pois o Espírito anexa a Natureza na identidade do entrar-em-si e sair-de-si que é a dialética. Esta sede de Absoluto é a hybris da filosofia transcendental.

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