São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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O futuro segundo John Sculley

MARSHALL BLONSKY; CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na entrevista a seguir, concedida à Folha em seu escritório em Nova York, o executivo John Sculley fala sobre as dificuldades que o Brasil pode enfrentar no processo da economia globalizada, onde informação e tecnologia ocupam papéis centrais.

Folha - Lendo suas novas palestras e as anotações que o sr. me deu sobre os seminários no Brasil, tive a impressão que está dessacralizando a própria tecnologia. Mas, nos anos 80, como CEO da Apple, o sr. era um símbolo da tecnologia.
John Sculley - Estamos na metade dos anos 90. O motor agora é comportamento, não tecnologia. Em sua maior parte, a tecnologia está bem testada. A questão é transformá-la em produtos e serviços e fazer as pessoas mudarem seu comportamento para adotá-la.
Para que alguém faça uma mudança comportamental importante, dois critérios devem estar em jogo. Primeiro, o agente de mudança deve permitir a satisfação de alguma necessidade bem familiar. Segundo, deve consegui-lo com mais eficiência que o comportamento substituído. No caso dos computadores pessoais, por exemplo, o processador de texto está apenas preenchendo a necessidade de uma máquina de escrever.
Folha - Trata-se, então, de tecnologia que as pessoas não sabem como utilizar.
Sculley - Quando eram avaliadas, as companhias pioneiras dos anos 80 recebiam um prêmio pela tecnologia de que dispunham. Nos anos 90, as companhias pioneiras são as que detêm tecnologia mercantilizável, facilmente substituível por outra tecnologia; assim, a tecnologia recebe um desconto, não um prêmio, e o valor real hoje está no marketing. E o marketing é obviamente muito mais uma questão de comportamento do que de tecnologia.
Em menos de uma década, mudou o modo de pensar sobre a industria de tecnologia avançada, porque as pessoas perceberam que não é mais o milagre dos feitos tecnológicos que captura a imaginação das pessoas. O que está capturando suas imaginações é a convergência de comunicações, conteúdo, computação e personalização, todas reunidas; e é a personalização, possibilitada por essa convergência, que responde pela mudança comportamental.
Subitamente, podemos passar da mídia de massa para a mídia personalizada. Para mim, a mudança maior é comportamental, no sentido de permitir que pessoas tenham experiências personalizadas com suas compras, com a propaganda e mesmo com os conteúdos.
Folha - Já estamos numa sociedade em que o que temos em comum é um mundo de imagens compartilhadas, provenientes da propaganda, não no sentido restrito, mas no de mídia em geral. E o que constitui esse patrimônio é em geral a cultura de massa. Se essa cultura se tornasse altamente personalizada, se esse "patrimônio" deixasse de existir, o sr. não acha que isso implicaria mudanças muito além do marketing? Creio que seria uma situação bastante disruptiva.
Sculley - Bem, nos EUA, a personalização deve atingir, na prática, uns 20% da população, porque só estes terão o poder aquisitivo e o interesse para usar a informação personalizada. Os outros 80% terão maior escolha. Escolha significa uma maior variedade de entretenimentos, uma variedade maior de coisas em que elas poderão ter interesse. Nem todos viverão a mudança social iminente da mesma maneira. Para começar com meu próprio país, acho que o que faz dos EUA uma sociedade única é o individualismo que, curiosamente, eu mencionei apenas de leve.
Há uma coisa que Tocqueville observou quando veio para cá, algo que distingue os EUA do Canadá logo aqui ao Norte: fomos fundados numa revolução e eles, na evolução. Somos uma sociedade muito mais violenta, e desde o início, uma sociedade que é inventiva através da colisão de forças, em medida provavelmente maior do que qualquer outra. De um lado, isso será uma força a nosso favor. De outro, já não temos mais objetivos comuns no país -não estamos tentando pôr um homem na lua ou derrotar o comunismo-, e como tendemos a nos galvanizar não em torno à cultura, mas a objetivos comuns, que infelizmente (risos)... Assim, como estamos fundados no individualismo, tendemos a nos fragmentar.
Folha - As imagens que Contardo mencionou -a falta delas- são a contrapartida disso.
Sculley - Visto negativa ou positivamente, nosso capitalismo tem raízes em nosso individualismo. E a companhia virtual, a corporação virtual é o exemplo disso neste fim de século. A Europa está enraizada em instituições e, por isso, vemos a Europa aproximando-se da economia informatizada do ponto de vista do que podem fazer as instituições -entendidas como raça, como "esprit.
Euromentalidade: o que podemos fazer com a União Européia para conseguirmos um novo modo de institucionalizar a tecnologia informática? Enquanto nos EUA a situação é inversa. Há uma enorme rebelião aqui contra a participação do governo -ou quaisquer instituições- na era informática. Meu palpite é que o modelo americano terá mais sucesso, porque estamos num período de tremenda inventividade.
Folha - E o Brasil nesse processo?
Sculley - Espero que o Brasil aprenda com a decisão que tomou quanto à indústria da informática, com os computadores, quando disse: "vamos reservar essa indústria importante para o Brasil, não deixando que outros entrem aqui". E o que se conseguiu foi exatamente o contrário. Deixaram o Brasil de fora dos últimos 15 anos de indústria informática.
Folha - Desde 1930, e quase sem interrupções até pouco tempo atrás, o Brasil tem sido um país altamente protecionista. O sr. já esteve lá?
Sculley - Sim, vivi e trabalhei lá, nos anos 70; no sul do Brasil, Curitiba, Porto Alegre. Também em São Paulo, e estive em Belo Horizonte, Salvador. Estive indo e voltando por três anos e meio.
Folha - E o sr. acha que o Brasil está mais próximo do modelo americano ou europeu?
Sculley - Bem, não sou a pessoa certa para responder, porque estive lá ainda durante a ditadura militar.
Folha - A classe empresarial brasileira mais progressista e de maior liderança está provavelmente voltada mais para os EUA do que para a Europa. Mas, por outro lado, há a fortíssima inércia do aparelho de Estado, que é altamente burocrático, institucional -mas isso está mudando, agora que a privatização está em curso. Lembro-me de que uma das visões norte-americanas sobre o Brasil era a de que o país deveria tomar o caminho que o Sudeste da Ásia acabou por tomar, que deveria tirar vantagem dos custos muito baixos da mão-de-obra.
Sculley - Duvido. O maior problema desse modelo é o sistema educacional brasileiro. Há mão-de-obra barata, mas não especializada. Todos os tigres asiáticos têm mão-de-obra especializada, e o modelo de custos baixos foi uma situação transitória.
Estamos agora descobrindo que podemos ter competência alta e custos baixos, de modo que é possível criar software de qualidade na Índia e produtos industriais muito bons na China. Acho que isso tornará difícil para o Brasil competir apenas com base no trabalho barato.
Folha - Então qual lugar na economia globalizada restaria para a América do Sul (noção estranha, já que comporta países tão diferentes) e particularmente para o Brasil?
Sculley - Quanto ao Brasil: em primeiro lugar, o país ainda tem muitos recursos naturais. Os recursos não têm mais o valor que antes possuíam. Em segundo, o antigo modelo para recursos naturais, o valor agregado a esses recursos sempre ia parar no exterior. Agora o próprio Brasil é capaz de agregar uma parte desse valor antes que os recursos saiam do país, antes que sejam exportados. Em segundo lugar, o Brasil é um mercado, e eu acho que o Brasil como mercado é provavelmente uma saída mais convincente do que o Brasil como população produtiva.
Folha - Isso exigiria uma mudança cultural na mentalidade dos empresários brasileiros. O capitalismo brasileiro jamais considerou os trabalhadores como mercado potencial.
Sculley - O Chile e a Argentina provam que é possível criar um mercado do tipo do que falamos. O que aproxima o Brasil desse modelo é a distribuição da população mais rica -toda ao longo da costa. O Brasil é um país gigantesco geograficamente, mas com uma população rica reduzida e limitada às cidades costeiras -isso faz dele um país menos interessante do ponto de vista do mercado.
Folha - Se eu fosse um diplomata ou industrial brasileiro interessado no crescimento do meu país ficaria desanimado com sua visão do futuro do Brasil baseado num modelo de consumo. O sr. não vê aí uma barreira para o Brasil, dada a falta de riqueza educacional?
Sculley - Este é de fato um problema. A importância da educação é maior numa economia informatizada global do que em qualquer outra espécie de economia. Não há muito o que fazer a respeito. Mas o Brasil tem -como os EUA- uma diversidade incrível. Tentando dar nova vida ao clichê, o Brasil é um cadinho de raças. Provavelmente os EUA e o Brasil são os melhores exemplos disso no mundo, dada a diversidade de populações que temos.
A diversidade costuma ser parte do DNA da criatividade. É esta uma das razões, ao lado do individualismo, pelas quais há muita criatividade aqui e tão pouca na Europa. Criatividade não é coisa de indivíduos brilhantes; é um encontro de pessoas que se reúnem e fazem coisas brilhantes. É o princípio do enxame.
Folha - O problema mais profundo deriva do fato de que a estrutura social e cultural brasileira ainda é muito próxima da escravidão na cabeça das pessoas, incluindo aí os empresários. É difícil pensar que ex-escravos poderiam participar do mercado. Provavelmente, isso ainda está na mentalidade brasileira.
Sculley - Bem, o Brasil não é uma economia de consumo, ao menos não em nosso sentido do termo. Nos EUA, a grande mudança veio no começo do século com Frederick Taylor e Henry Ford, quando os dois conceberam a produção em massa para um mercado de massa -e foi esse o começo do marketing de massa. Henry Ford dizia que queria conceber uma companhia onde os trabalhadores tivessem meios de comprar o que produziam. Foi um conceito incrivelmente inovador na época.
Folha - Isso ainda não aconteceu no Brasil.
Sculley - Acho que a questão é cultural. Conforme o trabalho se redefine nesta nova economia -cada vez mais de "informação intensiva"-, conforme o valor agregado ao produto é centrado em informações, as experiências culturais que não capacitam as pessoas para isso terão severas desvantagens.
Vejamos as telecomunicações. Mesmo hoje em dia, as pessoas estão pagando um extraordinário preço a mais pelas frequências sem fio, mas todos sabem que em 15 anos, por volta de 2010, elas serão apenas uma mercadoria a mais. A questão não é, então, de tecnologia ou de amplitude de onda. Trata-se na verdade do valor agregado dos serviços que usam a tecnologia -e aí entra o marketing.

Continua à pág. 5-13

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