São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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O PENSADOR DO NAUFRÁGIO

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Folha - Muitos consideram o que está acontecendo na Rússia, Iugoslávia etc como uma decorrência do fim do comunismo, mas, levando sua análise em conta, talvez isso tenha sido a causa subjacente de sua derrocada, na medida em que o sistema não teria sido capaz de se sustentar diante dessas tensões.
Enzensberger - À União Soviética, afinal, não faltava força, ela era muito bem armada. Ela desmoronou por dentro. A estrutura, é verdade, não tinha qualquer viabilidade econômica e perdia terreno a cada ano, mas também ninguém mais era leal a ela, ninguém mais acreditava nela, nem mesmo seus funcionários, nem mesmo as próprias lideranças do partido. Havia, assim, de um lado, pressão econômica e, do outro, um vácuo ideológico.
Folha - O sr. viu isso quando previu não só a queda do ditador romeno Ceaucescu mas o modo como ocorreria.
Enzensberger - Eu conhecia muito bem o mundo socialista. Visitei a maioria de seus países, numa época em que a esquerda européia -intelectuais do tipo marxista- nunca ia para lá. Eles passavam férias na Itália, iam à França ou à América, mas ninguém visitava um lugar como a Romênia. Eles evitavam isso. Eu sempre fiz questão de ver pessoalmente.
Folha - O que me surpreende é que num livro como "Depois da Queda" -que inclui um ensaio seu-, intelectuais ocidentais de esquerda desqualificam o ponto de vista daqueles que realmente viviam nos países socialistas. Estes não teriam qualificações para falar de seus regimes, pois eram opositores.
Enzensberger - Lênin escreveu um pequeno livro chamado "A Doença Infantil do Comunismo". Há, assim, essa doença infantil da nova esquerda européia que consistia, basicamente, numa perda de realidade. Isso valia também para uma grande parte da esquerda latino-americana. É necessário observar, porém, que ser um membro da esquerda ocidental não é uma situação muito invejável. No Ocidente, a esquerda sempre esteve em minoria. E minorias, às vezes, se sentem muito na defensiva, até mesmo paranóicas. Grupos de exilados, por exemplo, que vão para Paris ou Nova York, perdem um pouco o contato com a realidade, sentem-se pequenos e isolados. Brigam sempre entre si.
Mesmo dentro desses grupos há um tipo de patologia, uma patologia social, uma espécie de problema mental. Isso acontece também com a esquerda. Eu venho da cultura política da esquerda e não me arrependo disso. Mas, pode-se ver no seu ambiente algo de ridículo, absurdo. Por exemplo, numa cidade como Londres havia gente que continuou durante 30 anos brigando sobre Trotsky. Isso nada tinha a ver com a realidade inglesa, aliás, com nenhuma realidade. Era um exercício puramente teórico, acadêmico. Um outro fator é que a base social de grande parte do marxismo ocidental é a academia (o mundo universitário). Se alguém vive num "campus", um lugar isolado, não tem muito contato com a realidade exterior. É bom explicar nesses termos sociológicos algumas das enfermidades da nova esquerda, porque não estou interessado apenas em condenar essas pessoas. É mais interessante tentar explicar como é que pessoas inteligentes chegam a tais crenças.
Folha - Eu culparia a esquerda ocidental de se ocupar demais do conflito americano-soviético e deixar de lado os verdadeiros problemas.
Enzensberger - Isso é parte do que chamo de perda de realidade, algo que pode ser comparado com o que acontece com uma seita. No mundo inteiro, as seitas sofrem uma certa perda de realidade.
Folha - No seu ensaio sobre o socialismo enquanto estágio mais alto do subdesenvolvimento, o sr. fala de um certo ditador tomado pela idéia de produzir seu próprio queijo camembert. Ele acabou fabricando algo intragável que custava tanto quanto um pequeno trator. Em que democracia popular isso aconteceu?
Enzensberger - Você mesmo pode adivinhar, não é difícil.
Folha - Posso pensar em dez países onde isso seria possível.
Enzensberger - Direi apenas que se tratava de um país tropical.
Folha - Em cada um dos países descritos em "A Outra Europa", o sr. toma um escritor como guia: Almeida Faria em Portugal, Tadeusz Rozewicz na Polônia. O escritor teria a função, em países pequenos ou mais ou menos distantes, de interpretá-lo?
Enzensberger - Sim, mas no caso de meu livro é também um recurso, uma espécie de truque. Dante, ao visitar seus países metafísicos, o Inferno, o Purgatório, escolheu Virgílio como guia. É um mecanismo que pode ser usado por outros escritores.
Folha - O sr. pensou em lançar mão disso no seu longo poema "O Naufrágio do Titanic".
Enzensberger - Não teria sido possível, pois optei por fazê-lo não como um texto homogêneo, mas usando várias perspectivas diferentes. Tratava-se de uma história que todos já conheciam e, assim, não poderia ser contada linearmente. Como é mais uma montagem ou uma colagem, ele não precisa de um guia, que só me daria uma única perspectiva. Pode-se comparar meu poema ao trabalho de um cineasta que usa primeiro um "zoom", depois a teleobjetiva, ora a câmera fixa, ora móvel.
Folha - O poema tem muito a ver com Cuba?
Enzensberger - Grande parte dele foi escrito lá. Em muitos sentidos, comecei a pensar em Cuba como um navio que está naufragando.
Folha - E onde pode parar esse naufrágio? Parece-me, às vezes, que se Castro tivesse deixado o poder há, digamos, dez ou 15 anos, ainda teria obtido um nicho na história latino-americana como quem conseguiu mudar o tipo de relação entre os EUA e seus vizinhos.
Enzensberger - Ele poderia ter se tornado uma espécie de pequeno Bolívar. Mas, naturalmente, quem quer que tenha o poder raramente o abandona por sua própria iniciativa. Ele não é capaz de abrir mão do poder, mais ou menos como Napoleão, que teve que tentar de novo depois de derrotado. E foi necessário exilá-lo em Santa Helena para se livrar dele.
Folha - Fidel Castro tem um elemento de tragédia como Napoleão ou é apenas deprimente?
Enzensberger - Não consigo ser objetivo com ele, pois penso em todos os cubanos, de quem gosto muito. Afeiçoei-me muito a Cuba. Não posso perdoar quem arruína esse país e esse povo. Não estou preparado para ser neutro e distanciado como um historiador. Lamento muito pelos cubanos.
Folha - E quanto à Iugoslávia?
Enzensberger - É uma tamanha confusão. Jamais, em público, dei qualquer recomendação acerca do que fazer sobre a Iugoslávia, porque eu mesmo não faço idéia. Conheci muito bem a Iugoslávia por 20 anos, mas não vejo como é que seus problemas podem ser resolvidos. Há muitas questões lá que simplesmente não têm resposta. Todo mundo -alemães, americanos etc- cometeu uma série de erros técnicos. Mas havia algo de profundamente errado na própria Iugoslávia, afinal foi lá que isso começou. Os perpetradores, como em Ruanda, são as pessoas de lá, não as de fora.
Folha - Falemos um pouco de poesia. Há, no "Naufrágio do Titanic", uma imensa variedade de formas e recursos de expressão.
Enzensberger - Eu não tenho nem quero ter uma doutrina para a poesia, um conjunto de regras e procedimentos. Muitos têm regras, não só os tradicionalistas acerca da "oitava rima" ou do soneto, mas as vanguardas também têm regras severas, porque, quando você é concretista, espera-se que só faça poesia concreta. Você é obrigado a seguir uma linha, uma doutrina. Eu não gosto disso. Não gosto de doutrinas.
Folha - Creio que os concretistas brasileiros tomam atualmente a poesia concreta como apenas um dos estilos segundo os quais podem escrever.
Enzensberger - É bom saber disso, pois doutrinas são para professores, não para poetas. O poeta deveria desenvolver sua teoria "ad hoc" enquanto trabalha.
Folha - No começo dos anos 60 o sr. era considerado um sucessor poético de Brecht. Como o sr. vê hoje sua obra?
Enzensberger - Seu teatro sofreu muito mais com o tempo do que sua poesia, por causa de seu caráter didático. Não conheço muita gente que gostaria de ir ao teatro para ter uma aula política. As coisas que ele procurava dizer tornaram-se também muito banais. Tenho minhas dúvidas de que ele possa se tornar um clássico do teatro, mas acho que sua poesia sobreviverá, pois nesta ele é menos esquemático.
Folha - Nessa época o sr. também era associado por muitos a Theodor Adorno. Mas uma diferença central entre vocês dois é a de que ele está sempre nostálgico de um passado idílico pré-moderno, pré-industrial, que, suspeito, nunca existiu. O sr., por outro lado, parece gostar de viver na modernidade.
Enzensberger - Nunca fui um seguidor, por exemplo, de Rousseau, que também olhava para trás, para alguma era imaginária, uma época de ouro e coisas assim. Isso nunca me interessou muito. Sempre tive uma relação irônica com as utopias. Nunca pude me convencer a acreditar nelas porque não sou bom em acreditar.
Folha - Talvez na poesia?
Enzensberger - Ela não é tanto uma questão de crença mas de prática. É ela que me dá o maior grau de liberdade. Todas as outras formas de expressão parecem nos prender. Há, por exemplo, na ficção toda a pressão da trama, que tem que ser construída de uma determinada maneira; e ela é, em geral, produzida para o mercado. Quanto à poesia, não há mercado para ela. E isso é bom. Quer se seja desconhecido ou famoso, não se pode ganhar dinheiro com poesia. Isso é um privilégio, pois assim não há como ser capturado ou deformado. Há nela, portanto, uma imensa liberdade.

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