São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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A mangueira

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Minha varanda dá para a Lagoa mas a área de serviço é aberta para um espaço verde, onde se ergue a imensa pedra do Morro dos Cabritos. Nunca ninguém viu cabrito ali, minha cozinheira já viu até disco voador iluminando com sua luz fria a pedra negra e nua. Cabrito, jamais.
Os prédios em volta, que sucederam as velhas casas senhoriais, respeitaram aquele trecho, duas piscinas saÍram do esquadro, ninguém teve peito para botar abaixo a velha mangueira.
A árvore fica na linha divisória de três terrenos, era como é hoje, de todos e de ninguém. Quando o sol, à tarde, é muito forte e se reflete na Lagoa, tornando-a uma fornalha de luz, gosto de ir lá nos fundos, ver o seu verde calmo e sombreado. Ela é compacta, olhada aqui de cima parece uma flor gigantesca nascida na fenda inesperada da rocha.
Já me garantiram que não dá frutos. Ainda bem. As mangas que dela nascessem seriam, literalmente, pomos de discórdia. Três condomínios iriam às varas, brigar pelas mangas. Sei que o Código Civil, desde os tempos de Napoleão, é taxativo: fala em "frutos pendentes e caídos" para dirimir conflitos de posse.
Apesar do dispositivo legal, sempre houve rixa e ódios hereditários por causa de frutos pendentes e caídos. O melhor que a mangueira faz, em proveito de todos, é não dar frutos mesmo.
Ela se basta em estar ali, brotando da negra pedra, farta e verde como uma flor. Se nascessem ali outras mangueiras unidas por impossível caule comum, teríamos uma assombrosa couve-flor, digna de ser devorada por um deus colossal e glutão.
Não sou glutão nem chego a ser deus. Limito-me a olhar a mangueira, a pensar coisas absurdas. Nos últimos tempos, meus contatos com a natureza são raros e vexatórios, o último foi uma salada de alface e pepinos que comi na sexta-feira santa. Bem, a mangueira é mais do que um contato. Ela é como eu gostaria de ser: sem a obrigação de dar os frutos que nunca saberei dar.

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