São Paulo, terça-feira, 25 de abril de 1995
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Gidon Kremer mostra-se mestre da frivolidade

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No início do século 19, quando a música de câmara vem se tornar um dos ideais da arte romântica, ela está associada também a um ideal de educação. A música, agora, é reconhecida como alta cultura e a composição, como uma forma privilegiada de inteligência.
É difícil hoje reconhecer o quanto este ideal ainda guarda vínculos com os traços humanistas da cortesia, do diálogo, do aristocrático "esconder a arte na arte", que impõe um veto sobre o pedantismo e a ostentação da complexidade.
A música de câmara, para nós, está mais próxima da filosofia do que do entretenimento; mais próxima da meditação do que da convivência amistosa.
Deixando de lado o "Divertimento" em mi bemol de Mozart, o resto do concerto de Gidon Kremer e sua Kremerata, sexta-feira passada no Teatro Municipal, pode, assim, ter decepcionado quem esperava algo mais consistente.
Quando a melhor peça (tirando Mozart) é o "Trio" para flauta de Weber, não há muito o que dizer.
Foi um concerto dos músicos, mais que da música. Mas nem pretendia ser outra coisa, e só o que se pode lamentar é o feliz desperdício de cinco músicos maravilhosos tocando uma música menos que maravilhosa. Foi um concerto à antiga, marcado pelo que os italianos chamavam de "nobile sprezzatura" (nobre desdém) -o desdém pela dificuldade, como se tudo fosse fácil e alegre de fazer.
Com essa aparente facilidade, o "Trio" foi reinventado, aos nossos olhos, como um legítimo filho de seu tempo, todo um teatro de premonições e sobressaltos, muito mais interessante que o habitual.
A revelação é que existe, afinal, alguma música dentro do "Trio" -uma revelação que ficamos devendo a esses três músicos.
Já o "Divertimento" para violino e viola de Arthur Lourié (1892-1966) só serviu para apresentar um compositor esquecido, uma espécie de Poulenc russo, mas não muito mais, aparentemente, do que uma curiosidade.
Não são muitos os grandes virtuoses que têm a coragem de procurar compositores desconhecidos. Também não são muitos os que aceitam dividir as luzes com outros músicos, especialmente mais jovens; só isto já é motivo para se gostar de Gidon Kremer.
O fato de ele ser (como ficou claro) um dos maiores violinistas vivos ajuda a fazer deste gosto mais que uma expressão de solidariedade ética.
Sofia Gubaidulina (1931) talvez não seja, contudo, sua descoberta mais feliz. É, na minha opinião, uma das compositoras mais superestimadas da atualidade.
Seu "Bailarino na Corda Bamba", para violino e piano, é uma peça de uma única idéia -a passagem do grave ao agudo, e do ritmo à linha, como metáfora de liberação-, musicalmente, uma coleção de clichês no mesmo nível de vulgaridade do título.
Já Messiaen, pelo contrário, é sempre original e um prazer de se ouvir, mas "Le Merle Noir" (1951), para flauta e piano, é um prazer que infelizmente não dura mais de três ou quatro minutos.
Depois de tudo isto, finalmente veio Mozart e, com ele, a clarividência -uma forma sobre-humana do pensamento, mas nem por isto menos humana no afeto.
Tocar Piazzola no bis, foi mais um salto da filosofia ao entretenimento; mas nenhuma platéia resiste a esse Albinoni do tango e a Kremerata, aqui, não podia ter sido mais expansiva e simpática.
Um desperdício de talento, talvez, mas o mínimo que se pode dizer é que eles são grandes mestres da frivolidade.
O estilo de Kremer, como o da Kremerata, é um estilo que tende para a hipérbole, mas sem jamais perder a clareza dos detalhes.
É um drama delicado de crescendos e decrescendos, transformações de cor e de luz, e pequenas façanhas de veladura, que, no caso, serviram também para corrigir a falta de contorno das composições (Mozart à parte).
Nesta turnê, estão viajando leve, se divertindo sem muito compromisso, mas com enormes doses de satisfação e alegria de tocar.

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