São Paulo, terça-feira, 25 de abril de 1995
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Reforma constitucional _mitos e realidade

IVAN VALENTE

No Brasil de hoje existe um insólito consenso sobre a necessidade da reforma constitucional. Uns dizem (especialmente o governo) querer reformar, quando pretendem desconstitucionalizar; outros falam desse objetivo supostamente comum para designar interesses em modificar dispositivos os mais desencontrados.
O PFL por exemplo -que, ironicamente, tenta associar à sua imagem o emblema de reformador- indica como item número um de sua pretensa reforma tributária a defesa do status quo. Isto é, a não-tributação das grandes fortunas.
Por outro lado, a maioria dos partidos da Frente Brasil Popular, que, corretamente, colaboraram para enterrar a "revisão", querem, com a reforma constitucional, eliminar entraves ou instituir dispositivos na Constituição que favoreçam à democratização da riqueza, da propriedade, da renda, da informação e do poder em nosso país.
É evidente que a tática das forças governistas no debate sobre esse tema não é esclarecer. Na linha de construir mitos, o ex-presidente Sarney, talvez por seus dotes de ficcionista, detém a condição de pioneiro.
Já no curso do Congresso Constituinte de 1988, ele vaticinou a ingovernabilidade do Brasil, sob a égide desta Carta. Passados mais de seis anos, o país foi capaz de suportar as turbulências do período "collorido" sem que a catástrofe anunciada sobreviesse.
Nessa mesma trilha, diversas personalidades, incluindo Collor e FHC, insistiram e insistem na arenga do suposto caráter hostil desta Constituição ao capital estrangeiro e da impossibilidade de, com ela, haver estabilização e desenvolvimento.
Porém, não fosse o terremoto que desmontou o mito da "modernidade neoliberal" no México e fez o Plano Real encontrar-se com sua "hora da verdade", aquelas mesmas autoridades continuariam capitalizando, sem corar, a estabilização monetária (vendida como definitiva), a "volta" do capital estrangeiro -incluindo a montanha de "hot money"- e o ciclo (sustentado) de crescimento econômico em que o país supostamente estaria ingressando. Tudo isso sem que os "obstáculos" constitucionais, apontados como intransponíveis, tenham sido removidos.
Beira o grotesco, porém, o carnaval que tem sido feito sobre a chamada questão fiscal -um problema sem fim para todos os países que se submetem à cartilha do FMI (Fundo Monetário Internacional)- tida como uma espécie de fonte de todo mal que afeta a nossa economia.
O governo e as elites clamam (enquanto a evasão fiscal e de divisas, a sonegação e outros crimes de colarinho branco correm soltos) contra a supostamente excessiva carga tributária que espoliaria as "classes produtoras". A mídia, os arautos do "Consenso de Washington", ministros etc. demonizam os serviços e os servidores públicos, identificando-os como causa do déficit público e da inflação.
Todavia, surpreendentemente, eis que: 1) fontes governamentais plantam notícias de que a reforma tributária virá (se vier) somente lá por 1997. Já em relação à malfadada emenda da reforma da Previdência, o Palácio do Planalto não se "acanhou" em desmentir a premência que ele mesma anunciara e tratou de orientar a desaceleração da tramitação da matéria. Tudo para tentar impedir que a revolta popular contra essa emenda se estenda inapelavelmente para as demais.
Isto é, toda mitologia que envolve as propostas governistas de reforma constitucional constitui, em verdade, uma cortina de fumaça produzida para encobrir objetivos que empurram o país para a rota da dilapidação do patrimônio nacional e do aumento da exclusão social que seguiram o México, a Argentina, Bolívia etc.
Noutras palavras, desconstitucionalizar (objetivo das forças governistas) é uma operação que conduz à desconstrução da nação, em nome dos imperativos da economia globalizada.
Nesse quadro, os partidos e correntes democráticas e populares -atentos à trágica lição dos mexicanos e argentinos- devem se contrapor, no Parlamento e na sociedade civil, à "sabedoria convencional" que mimoseia como racionais e modernos os aderentes aos dogmas neoliberais da privatização e da submissão ao deus mercado e que sataniza, como "dinossauros" e "nacionalistas dos anos 50", os que se opõem à sanha conservadora que envolve, inclusive, a selvagem mercantilização dos serviços públicos.
Essa oposição requer, também, uma agenda alternativa que, além de toda legislação complementar (a exemplo da LDB, Lei de Diretrizes e Bases, que se arrasta penosamente há mais de cinco anos pelo Congresso), inclua reformas constitucionais que desmontem a tutela militar sobre o Estado e a sociedade; democratizem os meios de comunicação, o Poder Judiciário e a gestão das empresas estatais; eliminem os obstáculos à reforma agrária e viabilizem uma reforma tributária que taxe as grandes fortunas, que racionalize a cobrança de tributos e instaure a justiça tributária em nosso país.
São urgentes igualmente reformas que instituam o fim do Senado como câmara revisora, que viabilizem a fidelidade partidária e a efetiva proporcionalidade da representação parlamentar entre os Estados no Congresso Nacional.
Em síntese, nosso compromisso deve ser aquele que promova o avanço da democratização da nossa sociedade e favoreça a constituição em nosso país de uma economia capaz de propiciar emprego, produzir alimento, vestuário, calçado e moradia para a maioria da nossa população. Um país, enfim, em que a cidadania econômica, política e cultural seja vivência concreta do seu povo.

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