São Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 1995
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Teatro contemporâneo descobre seus clichês

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Mesmo quem não vai nunca ao teatro já ouviu falar na fumaça de gelo seco que Gerald Thomas utiliza em seus espetáculos. Numa entrevista à "Playboy", o diretor mostrou-se irritado quando lhe perguntaram se iria pôr fumaça em sua próxima montagem. Thomas respondeu que usa gelo seco, como também usa refletores, iluminação -e que ninguém faz brincadeiras pelo fato de haver iluminação. A fumaça é um recurso, enfim, como outro qualquer.
É verdade; depois, trata-se de uma espécie de marca registrada de Gerald Thomas. Mas quero comentar um pouco certos "recursos" em moda no teatro hoje em dia -e não viso nenhum diretor em particular. Há alguns procedimentos que se espalham por aí, como a fumaça de gelo seco.
Está virando mania, por exemplo, fazer com que os atores fumem em cena. O "Don Juan" de Otavio Frias Filho, com direção de Thomas, começa com vários personagens de cigarro aceso; um espetáculo completamente diferente, "Navalha na Carne", de Plínio Marcos, dirigido por Marcos Alvisi, faz uso do mesmo recurso.
Não é para dar naturalidade à cena; os atores não fumam cigarro enquanto dialogam, não se trata de um ato corriqueiro. O fumar em cena surge, ao contrário, como um ato transgressivo, desafiador, antinaturalista. Instaura uma espécie de silêncio no palco, serve para inaugurar a ação dramática, ou para interrompê-la com solenidade ritual. É intrigante: já é quase um clichê também.
Outra coisa fácil de encontrar nos palcos, atualmente, são os pintos de borracha. Há uma verdadeira falomania, no teatro. Os usos desse artefato diferem de peça para peça: em "Guerreiras do Amor", de Aristófanes, tem um efeito cômico, aparecendo em grande variedade de formatos e dimensões; no "Don Juan", sua ausência seria notada; de aríete descomunal em "Ham-let", de Zé Celso, passa a objeto sacro, ersatz do Cristo, em "Mistérios Gozozos", do mesmo diretor.
Há, aqui também, a busca do transgressivo. Seria melhor dizer: há transgressão fetichizada. O falo vira fetiche, emblema portátil, ostentatório, ritual.
Paradoxalmente -passo ao terceiro exemplo- a nudez dos atores vai-se tornando, de tão comum, nada escandalosa. Não é com a intenção de "transgredir" que quase sempre alguém aparece pelado em cena. Tampouco é no sentido oposto, de celebração dionisíaca ou de estetização do corpo, que esse recurso é usado com mais frequência.
A nudez dos atores parece corresponder, em geral, a uma necessidade retórica: tende a tornar mais "denso" o espetáculo. Serve para intensificar as emoções no palco. É sinal de que algo "verdadeiro", "autêntico", está se passando em cena. Não conota mais sensacionalismo ou a tentativa de chocar o público, mas a seriedade do diretor, a força da situação.
A retórica do teatro contemporâneo parece exigir, também, o máximo volume da trilha sonora. Trovões e relâmpagos servem para tudo. Será ingênuo quem se preparar apenas para as tempestades do "Rei Lear", ou para as aparições espetrais de "Macbeth". Trovões pontuam mudanças de cenário, relâmpagos podem aparecer em instantes de anticlímax. Sangue e vísceras tampouco precisam de batalhas para serem jogados em cena. Urina-se bastante, também.
Está em jogo, precisamente, a "visceralidade", o corpóreo das emoções. Trata-se de dar um "soco no estômago" do espectador. Música altíssima, ou gritos mais altos ainda, é imprescindível e comum.
O tom destas observações é bastante crítico, sem dúvida, mas não quero que me entendam mal. Em primeiro lugar, é claro que recursos como os apontados acima podem ser utilizados ou não, podem dar certo ou ficar ridículos. A frequência com que aparecem, entretanto, é que precisa ser analisada.
Acho que acontece mais ou menos o seguinte. O estilo "realista" de representar, a direção tradicional, o "teatrão" certamente estão ultrapassados. Não que não continuem a existir e a render bons espetáculos. Mas, de um lado, notou-se há muito tempo que o tipo "natural" de representação é tão ou mais convencional do que outro qualquer. E, de outro lado, que o cinema, como máquina de produzir emoção e catarse, funciona melhor.
O caminho tem sido, então, "desnaturalizar" o teatro. Os gestos são estilizados, o cenário é anti-realista, os figurinos são arbitrários, a metalinguagem denuncia a ilusão do que está em cena, os atores mexem com o público, até. Tudo isso é conhecido.
Mas a essa tendência de "esfriamento", de acentuação da ironia, contrapõe-se a necessidade de continuar emocionando o público, de assegurar-lhe sensações fortes e espantos profundos, difíceis de encontrar no cinema.
E isso acontece; só que exige uma nova retórica. Pensando nos exemplos que dei acima, talvez dê para concluir que o teatro não-tradicional tende a jogar com algumas oposições, cada vez mais repetidas e identificáveis.
Hiperemocionalismo nos gritos e estertores, ao lado de gestos estilizados, irreais, grandes sustos na trilha sonora, ao lado de fumaças "cool". Outra oposição típica: grandes correrias dos atores, atropelos de ponta a ponta do palco, e súbitas paralisações, passos em câmera lenta.
Se a emoção tende à visceralidade, ao corpóreo, ao exercício aeróbico e à gritaria, ocorre que o irrealismo, a estilização, a modernidade da encenação tendem, por sua vez, ao hierático, ao ritual. Ritual revolucionário ou religioso, nostalgia de uma ou de outra coisa, isso varia, claro.
Mas é como se víssemos duas forças opostas, não raro no mesmo espetáculo, e como se ambas fugissem do texto, dos personagens, do palco; dirigem-se ou para o corpo do ator, que se contorce à nossa frente, ou para longe, para o espaço, para o invisível, como a fumaça do cigarro que ele tem nas mãos.

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