São Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 1995
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Globo faz ficção jornalística e jornalismo ficcional

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há que reconhecer à Rede Globo (que comemora hoje 30 anos) os seus méritos. Ela instituiu um nível técnico e mesmo artístico de qualidade em nossa televisão: seus artistas têm um padrão médio bom, que consolida, por parte do público, um gosto e uma exigência de desempenho dramático.
Além disso, mesmo algo tão criticável como o caráter homogêneo de sua programação, uma só em todo o país, tem a vantagem de levar aos cantos mais conservadores, mais sujeitos à prepotência local, informações -sobretudo no tocante ao comportamento- que abrem espaços de liberdade.
Mas talvez aqui esteja, já, o problema do imaginário que ela constitui. Comecemos por um fato básico, o descompasso entre os noticiários e as novelas. Estas últimas são o que a Globo produz de melhor, e não apenas no plano formal.
Diria mesmo que a Globo é progressista nas novelas, apostando em mudanças -talvez até programadas, escalonadas- no comportamento do brasileiro, a partir, quem sabe, de alguma inspiração psicanalítica ou, pelo menos, psicológica.
Vários preconceitos conservadores foram e são, assim, combatidos. Atacou-se o machismo, mostrando-se que "quem ama não mata" e que quem é homem chora, sim. Defende-se a liberdade feminina de trabalhar e escolher a própria vida. Condenam-se a corrupção, o patrimonialismo, a dominação causadora de miséria, o racismo.
Mas tudo isso se confina nas novelas e nas séries dramáticas. O noticiário parece tratar de outro país, cujos grandes homens são os mesmos que, numa novela como "Fera Ferida", seriam vilões. Fica então difícil conciliar as duas séries de produções, a supostamente jornalística e a supostamente ficcional. Tenho duas hipóteses a respeito.
A primeira é que a ficção da Globo é mais jornalística e o jornalismo mais ficcional do que parecem ser. Não é curioso notar essa troca de sinais, pela qual se dramatiza a realidade -com os velhos recursos ficcionais- e se traveste de indícios realistas um imaginário?
A segunda hipótese, que aliás não contradiz a primeira, é que os dramas globais são progressistas enquanto se limitam a questões de comportamento, sem discutir causas ou responsabilidades. Tudo se exaure em posições pessoais, com a vida privada como causa da pública: o mandonismo, por exemplo, resulta somente da maldade, do preconceito, do equívoco.
Por isso pode haver tanto perdão, até para os piores patifes. Se as questões são apenas pessoais, isto é, morais e/ou psicológicas, basta um exame de consciência ou uma terapia, e -zás!- some o autoritarismo, quem sabe a própria miséria por ele causada. Assim as denúncias da dominação nas novelas se esgotam num efeito só catártico, que pode conviver com o mundo fantasioso dos dominadores que aparecem nos noticiários como gente de bem.
Há mais, porém, no imaginário construído pela Globo. Desconheço país desenvolvido em que igual poder se concentre numa rede de televisão. No Primeiro Mundo, há concorrência e há regulamentação -dois fatores que só aparentemente são contraditórios. Vários canais disputam o público em patamares menos desiguais, e há regras sobre a qualidade e a independência da programação. Tudo isso, aqui, falta.
Mas talvez o mais sério, nestes 30 anos em que nosso imaginário foi sendo norte-americanizado pela Globo, seja o que sucede às crianças. Na Europa, é costume restringir seu tempo de exposição ao que chamamos de "babá eletrônica". A TV é importante, mas menos do que o acesso à educação e cultura formais.
Aqui, a TV aposta numa velocidade rápida, na impaciência ante a cultura, na redução generalizada da experiência humana ao desejo de um gozo sem mediações nem dilação. Mais que isso, embora de vez em quando tente ganhar foros de nobreza transmitindo um concerto de gala, ela insiste na convicção de que a cultura é pesada, difícil, quase insuportável. Nada mais norte-americano, aliás, do que isso.
E concluo com uma lembrança neste sentido: em 1986 a Globo transmitiu o casamento do príncipe Edward com Sarah Ferguson. Mas os repórteres se desesperaram ao notar que uma soprano cantava uma (curta) ária de Mozart. "O que pensará nosso público?", devem ter-se perguntado. E invadiam o áudio com conversa mole, perturbando o canto, para falar das roupas dos convidados. É preciso algo mais para mostrar como o monopólio televisivo amesquinha o imaginário?

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