São Paulo, sexta-feira, 28 de abril de 1995
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O que há de errado?

FRANCISCO URBANO ARAÚJO FILHO

O 6º Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais acontece no momento em que o pequeno agricultor é excluído da política de crédito, da comercialização, da assistência técnica, em que o camponês assalariado é espoliado pelo setor patronal -sem Carteira de Trabalho assinada.
Constata-se também a exploração da criança, a prática do trabalho forçado e uma massa de meeiros e arrendatários, sem qualquer proteção. Ao mesmo tempo, há milhares de trabalhadores lutando pela posse da terra e reforma agrária. São homens e mulheres que sobrevivem apesar das indefinições do Estado.
O governo faz promessas, mas quando anuncia um plano, como o Programa Nacional de Reforma Agrária, não aloca recursos suficientes no Orçamento. Com uma mão, o Executivo exibe um projeto; com a outra, tira toda possibilidade de sua realização. Apesar das dificuldades econômicas, o Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais conseguiu reunir em Brasília cerca de 2.000 líderes camponeses, com os seus próprios recursos ou com os meios arrecadados nos Estados. Isso é um exemplo.
A indiferença do poder público causa indignação aos trabalhadores rurais. Apesar de sofrida, a categoria tem consciência de que a agricultura tem um papel estratégico no desenvolvimento do país. Aliás, o campo foi a base do crescimento das grandes nações do mundo. O exercício da cidadania, o fim da fome e da miséria exigem uma nova compreensão do papel e da importância do meio rural na vida brasileira.
É inaceitável que num lugar onde é só plantar e colher, como o campo, haja tanta pobreza. Dos 35 milhões de brasileiros considerados indigentes, 17 milhões estão no meio rural. É uma ofensa à cidadania. É preciso pensar nesses cidadãos e começar a questionar. Como explicar essa situação? É possível que a resposta seja: "Ele é pobre porque deixou o campo e não conseguiu um emprego na fábrica, no comércio, não passou em concurso público". Talvez, a arrogância, a vontade de explorar e humilhar expliquem essa cruel realidade.
Os trabalhadores rurais não estão voltados para o "muro das lamentações", pedindo caridade ou esmolas. Cobram seus direitos, querem mudanças de conduta em relação ao campo e têm propostas fundamentais para o país: a reforma agrária e a definição de uma política agrícola específica para a agricultura em regime de economia familiar.
A reforma agrária é necessária não só para tirar da indigência milhões de trabalhadores que vivem às margens das estradas, mas também por ser instrumento de distribuição de renda, geração de emprego e construção da cidadania.
É, no entanto, um processo que tem de ser complementado por uma política agrícola diferenciada, que implica uma visão de desenvolvimento distante da que vem sendo executada até hoje. Tudo isso exige um elemento básico: a terra. A terra é vida e infelizmente está concentrada nas mãos de poucos, sem cumprir sua função social.
Apesar das adversidades, a agricultura familiar é responsável por quase 80% de tudo o que se come no país. É preciso definir, identificar e garantir meios para elevar a produção e oferta de alimentos, tornando-os acessíveis à toda população. Sem isso, o combate à fome e à miséria é discurso.
Não se enganem. A agricultura empresarial tem um papel estratégico na economia do país. Mas não é diversificada, é voltada para a exportação e a sua capacidade de gerar empregos é sete vezes menor do que a da agricultura familiar. A agricultura patronal ocupa 75% da área agricultável e oferece 20% dos postos temporários de trabalho. Os pequenos, distribuídos em apenas 25% das terras (cerca de 100 milhões de hectares), geram 80% da ocupação permanente, ou seja, 20 milhões de empregos. São dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
É hora de refletirmos com seriedade sobre o outro Brasil, o do campo. Se o Brasil urbano não tomar conhecimento da realidade rural, milhões continuarão relegados ao atraso e isso vai piorar ainda mais a vida na cidade. Há um ditado popular que diz: "Passarinho não morre de fome sentado no galho. Ele morre voando à procura de alimento". Agora, imaginem o homem... Se a sua sobrevivência está ameaçada pela falta de alimento, saúde etc., ele acaba apelando para a violência.
Esta sociedade precisa mudar, sob pena de tornar-se uma selva. Mesmo na Europa, com uma economia modernizada, o desemprego assusta, ainda que esteja no patamar dos 3%. E aqui? Não há alternativa. Os homens da cidade, mais cedo ou mais tarde, vão entender que não vivem sem o campo. Não conheço máquina que fabrique arroz, feijão... Nem mesmo carne. Estes produtos são transformados na cidade, mas vieram do trabalho do homem do campo.
O Movimento Ação da Cidadania, contra a Fome e pela Vida, coordenado pelo sociólogo Betinho, está chamando a atenção da cidade quando elege como um dos seus objetivos a "Democratização da Terra". É bom prestar atenção, pois, se não pensarmos em conjunto nestas coisas, estamos fadados à degradação social. Nós, os homens do campo, queremos trabalhar, produzir e também participar da construção da nação.
Ainda na última quarta-feira, fomos -os 2.000 representantes dos trabalhadores rurais- ao Supremo Tribunal Federal. Dissemos que a reforma agrária interessa a todos e não vamos aceitar retrocessos, através de liminares que tentam derrubar o que conquistamos com tanta luta. Os seguranças ficaram assustados, como se fôssemos bandidos. Se fôssemos grandes empresários, a recepção seria diferente.
Éramos apenas trabalhadores rurais, calejados pela enxada, queimados de sol, reivindicando terra para trabalhar. Somos cidadãos e exigimos o direito a uma vida decente. O que há de errado?

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