São Paulo, sábado, 29 de abril de 1995
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Rio insere Rodin em suas belezas naturais

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma característica que, com ou sem razão, atribuímos ao gênio é a do excesso, da overdose. Os comedidos têm no máximo talento. Einstein, e, antes dele, Montaigne, mal sabiam quantos filhos tinham ou quais ainda viviam. A idéia do equilíbrio, da vida ordeira e regrada, cria ótimas pessoas, mas lhes veda pretensões maiores: só funciona quando a própria regularidade e normalidade atingem alturas irrespiráveis.
O gênio Kant era tão maníaco de horários que seus vizinhos em Koenigsberg acertavam os relógios por ele, quando saía para seu cooper diário. Sua regularidade era enigmática como a do Sol ou da Lua.
Ainda que Rodin não tivesse dado provas de gênio durante sua vida tormentosa, a exposição que ora se faz de suas obras no Rio lhe daria um diploma póstumo. Sua inauguração foi um dos maiores exageros que o Rio já viu. Saiu gente de todos os cantos da cidade para ver "O Beijo", "O Pensador", a extraordinária mão esquerda de um certo Wissant.
Fui lá no primeiro dia e os convites abundantes, somados à sede inesperada que os cariocas tinham de Rodin, geraram mesmo uma certa vulgaridade, como se em vez de vernissage tivéssemos ido parar numa celebração de Páscoa em supermercado, com esculturas de chocolate oferecidas ao freguês. Acho que convidado nenhum ficou em casa e que muitos penetras acorreram ao belo Museu Nacional de Belas Artes.
Que é que tantos foram buscar ali? Talvez admiração e um vago amor, como terá sido o caso da primeira visita que a Rodin fez Camille, filha do poeta Claudel. De tanto ouvir Papá Claudel clamar por um Deus católico dos mais excessivos, Camille foi, quem sabe, como uma pessoa qualquer procurar esse Deus no ateliê de Rodin. Pobre Camille, comeu o pão que o diabo amassou, ou virou o barro que Rodin amassou. Acabou presa num bloco de bronze.
A característica menos simpática do gênio é que, tendo uma obra a realizar na vida, como uma condenação, tudo que lhe aparece no caminho é matéria-prima para realizar a tal obra e cumprir pena. Se lhe cai na mão o gesso, tudo bem. Se lhe cai Camille, melhor ainda, pois ela já vem com seios, nádegas, projeto de vida que há de se submeter ao dele.
Grande escultora também, embora não tão grande quanto ele, Camille bem que tentou entrar no esquema. Seu pai Claudel era a favor do livre arbítrio e da paixão dirigida a Deus. Camille, à medida que as criava, destruía todas as suas esculturas, para que só permanecesse Rodin. Mas Rodin precisava consumir outras mulheres, para sua plena criação. Não podia dar certo.
Diga-se de passagem que naquele tempo havia uma Europa como jamais se verá outra igual, a Europa que acreditava piamente em sua missão de civilizar o resto do mundo, já que não aguentava sozinha tanto progresso material, e, lhe parecia, espiritual. Sabia tudo, podia tudo, e vivia na perigosa abundância do "embarras de richesses". Não possuía mais cofres suficientes para guardar tantos bens e bênçãos. Assim permaneceu a Europa mesmo depois da guerra de 1914-1918.
Os gênios podiam não querer travar relações de amizade, mas se cruzavam aqui e ali nos salões de Paris, como Proust e Joyce. Rainer Maria Rilke, que conheceu Rodin de tabela, pois casou com Clara, aluna de escultura dele, acabou mergulhando ele próprio em Rodin e escrevendo o livro que a editora Relume Dumará está publicando.
Anos mais tarde a Europa presenciaria outro encontro surpreendente, o de Samuel Beckett com James Joyce, os dois ilhéus, os dois irlandeses que mapearam para sempre a Europa, antes que ela afundasse como o "Titanic". Alguns exageraram ao dizer que Beckett foi secretário de Joyce ao tempo em que este escrevia "Ulysses", mas os dois mantiveram então intensa ligação intelectual.
Era, como no caso de Rodin e Rilke, a Europa no seu esbanjamento final de gênio. Tal como se, no Brasil, Euclides da Cunha tivesse sido amanuense de Machado de Assis e Clarice Lispector tivesse taquigrafado "Corpo de Baile".
Eu talvez tenha exagerado, ao falar nas multidões que o Rio está vendo acorrer ao Museu Nacional de Belas Artes, meu próprio espanto. Ou fiquei meio aborrecido de ver a exposição no meio de tal balbúrdia.
Glória é glória e até hoje perdura a marca indelével do novo e do inimitável em trabalhos de Rodin como "O Homem do Nariz Quebrado", retrato tocante e sem explicação, tanto quanto na evocação de Dante na "Porta do Inferno" e na figura do "Pensador", que é menos a visão de nossa perplexidade diante do mistério do que de nossa insatisfação entre o que nos foi concedido e o que nos tinha sido prometido.
Balbúrdia ou não, convém levar o livro "Rodin" de Rilke quando se visita a exposição. O livro foi escrito em duas épocas, 1902 e 1905. Fascinado, como a gente fica até hoje, Rilke se debruça mais de uma vez sobre "O Homem do Nariz Quebrado", obra que foi recusada pelo Salon de 1864. Rodin criou aquela estranha escultura "sem se perguntar quem havia sido aquele homem, cuja vida mais uma vez se desvanecia em suas mãos. Ele criou esse homem como Deus havia criado o primeiro homem, sem a intenção de gerar nada além da própria vida".
Segundo ainda Rilke, o indivíduo se impunha a Rodin como as catedrais aos artistas medievais. "O homem se tornara igreja, e havia milhares e milhares de igrejas, nenhuma igual às outras e todas vivas, que valiam sempre para mostrar que cada uma delas era um deus". A prosa de Rilke sobre Rodin é profunda e luminosa como a água de uma lagoa ao Sol. Faz parte da poesia de Rainer Maria Rilke. E aclara as próprias raízes da angústia européia naqueles tempos de uma primavera criadora que não se repetiria nunca mais.

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