São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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O progresso do peregrino

ROBERTO CAMPOS

A viagem aos EUA foi uma pausa no processo de deterioração de nossa imagem externa
"Só conheço dois supositórios capazes de agilizar as tripas da burocracia: a imprensa e as visitas de chefes de Estado."
(San Tiago Dantas)
A viagem de Fernando Henrique Cardoso aos Estados Unidos teve efeitos positivos em termos de construção da imagem brasileira no exterior. Após um surto de otimismo com o lançamento do Plano Real, e a espetacular vitória das teses reformistas na eleição de outubro, os radares internacionais passaram a detectar zonas de turbulência. Primeiro, o contágio da crise mexicana. Segundo, a percepção de que o Plano Real tinha a insustentável leveza dos milagres: contenção da inflação sem as dores da recessão. Os únicos métodos para isso seriam o aumento da oferta de importações (que encontra limitações cambiais), uma maciça desregulamentação (que encontra obstáculos em nossa tradição intervencionista), e uma célere privatização (que não ocorreu em parte por obstáculos constitucionais e em parte por lerdeza gerencial). A visão dessas insuficiências gerou internacionalmente a impressão de que o Brasil não se livrara da mania de espertezas jeitosas, e não atravessara a catarse existencial necessária para o abandono de velhos costumes.
A viagem aos Estados Unidos foi uma pausa neste processo de deterioração de nossa imagem externa. Em parte, porque Fernando Henrique reúne qualidades muito apropriadas para o palco internacional: boas maneiras, conhecimento de línguas (contrastando com o monoglotismo intransigente de Lula e Itamar) e, sobretudo, como intelectual de boa cepa, perfeita noção de que os gargarejos provinciano-populistas, de que tivemos supersafras, não são artigo de exportação. Levam apenas ao ridículo. Não destroem a piada de que o Brasil tem um grande futuro no seu passado... O timing da viagem não parecia dos melhores, porque o vácuo na frente interna não poderia entusiasmar ninguém. Mas Clinton está numa posição muito débil, após sua derrota nas eleições congressuais. Perdeu em parte por causa de uma série de cacoetes políticos dos democratas, que continuam a tentar fazer o jogo dos "minority groups", alienando assim um eleitorado cansado dessa dispendiosa demagogia; e em parte por problemas pessoais e iniciativas políticas que custaram caro demais, como a aposta econômica muito alta no Nafta, a imprevidência oficial na crise do México, e a tentativa de mudar, sob o comando da primeira-dama, o sistema de saúde. Já outro presidente brasileiro havia descoberto que primeiras-damas podem ser complicadores políticos... Hoje, Clinton está na situação nada confortável de ter um fortíssimo Congresso republicano com uma clara agenda (o "Contrato com a América") e Newt Gingrich como virtual primeiro-ministro -e de estar sendo descartado pela mídia já quase como "lame duck" (pato manco). Há em tudo isso até uma certa injustiça, pois a economia vai bem. O dólar se enfraqueceu em termos financeiros, mas os Estados Unidos foram o país que mais recebeu investimentos diretos em fábricas e equipamentos no ano passado. A Alemanha e o Japão se enriqueceram financeiramente, mas a estrutura produtiva se amplia mais nos Estados Unidos.
O realmente importante para nós é que o Brasil mostrou um presidente de exportação, que soube falar com investidores potenciais, banqueiros, homens de negócios e formadores de opinião, e ventilou com suficiente discrição algumas idéias para amortecer a violência dos movimentos de capitais de curto prazo (assunto em que todo o mundo está pensando, sem que ninguém tenha uma fórmula salvadora). E exibiu um estilo pessoal não provinciano.
Bolhas especulativas sempre ocorreram no mercado mundial, mas hoje atingem dramática violência por três fatores: a revolução telemática, que criou o mercado instantâneo de 24 horas; inovações financeiras, como a securitização e os derivativos; e o surgimento de novos atores, como os fundos de pensão e os fundos mútuos de investimento, muito mais velozes do que as organizações fiscais e internacionais de crédito, e não sujeitas, como os bancos comerciais, à disciplina dos bancos centrais. Reconhecer o problema é apenas o prefácio da solução. Surgem logo as desagradáveis perguntas: quem vai pagar a conta do fornecimento de liquidez? O professor James Tobin sugere um IPMF internacional sobre movimentos especulativos de capital, para formação de um fundo internacional. Mas como distinguir entre movimentos especulativos e capital de giro produtivo? E todos os países teriam de aplicar simultaneamente o imposto, pois de outra maneira cresceriam explosivamente os paraísos fiscais. A segunda pergunta é qual a condicionalidade a ser imposta aos países socorridos para evitar a premiação dos mal comportados. Uma outra solução seria a ampliação dos direitos especiais de saque do FMI. Mas os credores austeros (Alemanha e Japão) acham que, se existem ataques contra moedas de determinados países, é porque as políticas macroeconômicas estão erradas: sobrevalorização cambial, por exemplo, no caso do México, e monopólios estatais, que impedem a atração de capitais permanentes, como no caso do Brasil. Assim sendo, os países auxiliados teriam de aceitar severo monitoramento internacional e de implantar reformas estruturais, coisas que os "nacionalistas" consideram indébita intervenção do imperialismo financeiro internacional. Como se vê, sobram perguntas e faltam respostas...
E agora, que está acontecendo no Brasil? Em que pese toda a minha simpatia pessoal por Fernando Henrique sou forçado a reconhecer que ele mais tem parecido um observador intelectual, cientificamente equidistante da situação nacional, do que "o" protagonista. No entanto, ele sabe muito bem que o país não tem saída fora das reformas que ele mesmo, enquanto candidato, e já como presidente, propôs. Não há outro caminho. E o tempo que resta é pouco. O que está acontecendo? Será o velho hábito de sentar no muro, de que o PSDB não conseguiu ainda livrar-se? Um aspecto encorajador é o anúncio da privatização da geração e distribuição no setor elétrico. Segundo as primeiras notícias, a transmissão continuaria monopólio do governo. Absurdo, pois se o transmissor abusasse nas tarifas, os investidores privados seriam estrangulados. Estes devem ser livres para construir linhas de transmissão, se isso for mais econômico. A Câmara dos Deputados acaba de aprovar a figura do "produtor independente". Por que não a figura do "transmissor independente"?
Há dificuldades no Congresso. O Brasil não é uma democracia de notáveis, à maneira antiga, em que uma elite altamente intelectualizada tinha tranquilo lazer para tomar as suas decisões. É uma democracia de massa repleta de contradições, na qual uma "nova classe" de clientes do Estado exercem a sua forma de exploração do homem pelo homem, numa espécie de bastardo "modo de produção burocrático-corporativo", com sua própria ideologia nacional-populista. Hoje, frustrantemente, os salários declinaram como percentagem do PIB; a agiotagem financeira disparou, movida pelo próprio governo; o sistema de saúde está em frangalhos; a educação virou uma farsa nauseante, com as universidades federais recebendo a parte do leão dos recursos orçamentários, e reitores sendo escolhidos por voto tripartido de professores, estudantes imaturos e pessoal auxiliar semiletrado; a Previdência está ameaçada pela loucura perdulária da Constituição de 88; os sindicatos permanecem com a mesma organização totalitária do seu modelo fascista; a legislação trabalhista é simplesmente maluca -temos milhões de ações na Justiça do Trabalho, por ano, enquanto que no Japão elas andam na casa do milhar. E continuamos a impedir a entrada de investimentos estrangeiros em ramos essenciais...
Mantemos os mais idiotas monopólios, com uma argumentação tão estulta que constitui ameaça à higiene intelectual. Enquanto isso, ainda há dias, num programa de televisão da Deutsche Welle, uma das mais importantes autoridades econômicas do Vietnã, Le Dang Doanh, explicava que a enorme disciplina e coragem desse povo socialista seria aplicada para a implantação de uma moderna economia de mercado. Fiquei sabendo que, desde 1992, a economia de mercado tornou-se preceito constitucional nesse país, que conseguiu vencer os Estados Unidos no campo de batalha! E absorvi o bizarro raciocínio de que essa transformação capitalista será facilitada pela ética socialista...
Perdemos o pulo da História há 20 anos, quando entramos num processo descontrolado de substituição de importações e da fabricação de estatais -precisamente no momento em que a Coréia (como, em geral, os "Tigres Asiáticos") adotou a austeridade competitiva, e nos deixou para trás em vergonhosa poeira. Estamos arriscados a perder, não mais o pulo, mas o próprio bonde da História, virando anotação de pé de página! É o preço dos monopólios, das estatais, da nacional-demagogia, do distributivismo do "progressismo" provinciano.
O Congresso está mostrando talvez um exagero de auto-afirmação. Mas é compreensível. Há anos tem sido um saco de pancada indiscriminado, com a mídia achando que uma dieta apimentada de escândalos é boa para a saúde. Não é. Há limites de bom senso, e atacar o Congresso indiscriminadamente nivela a todos por baixo, fortalecendo os elementos menos adequados. Fernando Henrique sabe disso duplamente, como sociólogo informado e como parlamentar experiente. O público está à espera de que o presidente entre em cena e lute pelas suas idéias.
O Plano Real -que está precisando de escora -suscitou, nos seus primeiros tempos, um triunfalismo ilusório. As reformas que o país tem pela frente não são água com açúcar nem samba de crioulo doido. Exigem firmeza nos rumos e o sacrifício de alguns "direitos adquiridos", que são, na realidade, abusos adquiridos. É o momento da verdade que, como o sal na ferida, dói, mas não deixa apodrecer.

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