São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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Chacina na cozinha

MARCELO LEITE

Uma extensa reportagem de Antonio Rocha Filho, Marcelo Godoy e Vinicius Torres Freire, no último domingo (caderno São Paulo/Cotidiano), mostrou que a periferia da Grande São Paulo fica mais perto de Ruanda que da rua Oscar Freire, nos Jardins.
A reportagem teve uma chamada (nota) na capa do jornal, sob o título "Jovens são maior alvo de chacina". Ainda mais agressivo foi o concorrente "O Estado de S.Paulo", que dedicou sua manchete (título principal) ao tema: "Cresce violência na Grande São Paulo".
Até aquele dia 23 de abril, segundo a Folha, o ano de 1995 já tinha trazido 15 massacres, ao aterrorizante passo de um por semana. Foram 81 vítimas (54 mortos), mais da metade com menos de 25 anos e quase o mesmo tanto sem antecedentes criminais.
É até constrangedor acrescentar estas duas últimas informações. Mas a tal ponto se chegou, na metrópole mais rica do país: tentar mostrar que, mesmo que se admita a pena de morte informal para facínoras, essas matanças ocorrem indiscriminada e arbitrariamente.
Se o assassinato de supostos bandidos ao arrepio da lei não sensibiliza mais ninguém, talvez a morte animal de inocentes possa ainda fazê-lo. Eis o raciocínio macabro que inspira a pauta da reportagem, mais que oportuna.
(Mas o que é essa gota no oceano de ressentimento secretado pela exibição nauseante da violência ao vivo, na TV, como esta semana com o sequestro em Marechal Cândido Rondon, no Paraná?)
Por um desses acasos que só uma repetição anormal propicia, na madrugada do próprio domingo morriam mais três adolescentes: os gêmeos Débora e Samuel, 14 anos, e seu irmão Pedro, 17. Foram mortos a tiros dentro de casa, em Franco da Rocha. Por volta das 2h, quatro homens encapuzados.
"Débora ainda tentou se esconder atrás da geladeira, mas foi atingida no peito e na cabeça", narrava a reportagem da edição de segunda-feira. Atrás da geladeira. Quatorze anos. No peito e na cabeça. Não é preciso ler Truman Capote para topar com a morte a sangue frio. Basta morar em São Paulo.
A Folha publicou a foto dos cadáveres de Débora e Samuel, ensanguentados, no assoalho da casa. Horror. Um leitor ligou para protestar: "A Folha não precisa disso, de fotos sensacionalistas". Discordei: "A Folha, não, mas seus leitores, sim".
Algo precisa ser feito para incomodar as pessoas. Sim, incomodar. Pois todos estão acomodados, indiferentes à barbárie que resfólega à sua volta, impune.
Se para isso for preciso ultrapassar o limiar do bom-gosto, tudo bem. Não será com fotos "poéticas", como a do cachorro na porta da casa miserável, usada na capa do caderno "Cidades" do jornal "Estado", que o jornalismo poderá entrar nessa guerra um tanto entediante.
Não se trata de um conflito explosivo entre o morro e o asfalto vizinho, como na simplificação que forçou o Exército a ocupar as ruas do Rio. É uma guerra de perdedores, de pés-de-chinelo mediocremente eficientes, como tantos paulistas sabem ser.
"Aqui na cosmopolita SP não tem Operação Rio nem Viva Rio, só tem chacina, uma em cima da outra", escrevi na crítica da edição de segunda-feira. "Pelas declarações patéticas do secretário da Segurança Pública, sr. Quem-Mesmo?, já deu para ver que não virá do Estado uma reação enérgica a essa vulgarização da brutalidade. Só sobra a tão falada sociedade. Nós mesmos. E o jornal, que poderia escancarar um editorial na Primeira, mostrando que o Rio não é aqui -porque aqui está muito pior do que o Rio."
Não saiu editorial algum de primeira página, o que talvez fosse mesmo exagero (nem a matança de 111 no Carandiru mereceu um). Mas houve ao menos um primeiro editorial, já na terça-feira, "Pacto sinistro". No "Estado", até sexta-feira, nem isso.
É pouco, diante da exorbitância dessas mortes pedestres, mesquinhas. Paulistas.
Dívida pública
Já faz umas semanas que a seção Painel da Folha publica, aqui e ali, referências a uma lista de empresas de comunicação devedoras do INSS. A última que vi foi uma nota meio misteriosa com o título "Problema de comunicação":
"Empresas estatais federais que, segundo a lista de devedores do Ministério da Previdência, veiculam propaganda em empresas de comunicação que estão em débito com o INSS: Correios, Banco do Brasil, CEF e Embratel".
Na crítica interna, como fizera em outra ocasião, instiguei o jornal a tentar obter a tal da lista. Mais ainda, a publicá-la. Afinal, não têm faltado listas no noticiário da Folha, intencionalmente vazadas para prejudicar corporações inteiras, como a dos agricultores (na queda-de-braço com o Banco do Brasil).
Corporação por corporação, sempre foi do estilo da Folha estranhar-se com a sua própria. Se voltar a fazê-lo, neste caso, estará prestando um grande serviço à opinião pública.

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