São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A economia política da mudança

EDUARDO GIANNETTI

Na sociedade perfeita não haveria o que mudar. Qualquer mudança concebível só poderia ser para uma situação pior que a existente ou, na melhor das hipóteses, igual a ela. Nada garantiria que os indivíduos fossem plenamente felizes ou que sempre alcançassem seus objetivos. A diferença básica é que eles encontrariam condições tão boas quanto fosse possível para desenvolver seus projetos de vida e jamais poderiam culpar o sistema por suas frustrações e fracassos. Quantas racionalizações confortáveis não cairiam por terra!
A idéia de perfeição é obviamente uma ficção humana. Seu grande mérito -como é o caso das utopias em geral- é servir como um contraste que inspire e permita realçar com tintas fortes a distância que nos separa do nosso potencial. Mais que um sonho, o ideal é uma arma com a qual se desnuda um mundo injusto e opressivo. Na prática, é claro, nada que é humano será perfeito, a começar pelo próprio pensamento utópico.
Um risco que nunca pode ser descartado -e o nosso século é pródigo em lições deste tipo- é o de tentar melhorar as coisas e acabar tornando-as pior do que já são. "O caminho do inferno", alertava o cruzado militante S. Bernardo no século 12, "está repleto de boas intenções". O problema é que o imobilismo e a resignação também chegam lá. Se agir é perigoso, deixar de agir pode ser fatal. Não há sociedade humana, por mais equânime e eficiente que seja, que não possa ser melhor do que é.
Como tornar as coisas melhores do que são? A teoria econômica define dois tipos básicos de mudança para melhor. O primeiro é a chamada "melhoria paretiana", formalizada no início do século pelo grande economista italiano Vilfredo Pareto.
A melhoria paretiana é a mudança sem dor. São os casos em que um ou mais indivíduos melhoram a sua situação sem que ninguém mais tenha que piorar por conta disto. Pode parecer bom demais para ser verdade, mas não é. A ocorrência deste tipo de evento é bem mais frequente -e nos ocupa por mais tempo na vida- do que se imaginaria à primeira vista.
Qualquer ato de troca voluntária, por mais trivial que seja, é uma ilustração concreta de melhoria paretiana. Quando Heitor Villa-Lobos, por exemplo, vendeu a biblioteca que herdou do pai para poder viajar e estudar "in loco" a música regional brasileira, tanto ele quanto o comprador dos livros fizeram um excelente negócio. Ao trocarem aquilo de que precisavam menos por aquilo que desejavam mais, ambos melhoraram a sua situação sem que ninguém fosse prejudicado. As trocas voluntárias são um jogo de soma positiva sem perdedores.
Infelizmente, contudo, nem tudo na economia é melhoria paretiana. O outro tipo básico de mudança é aquele em que alguns sofrem perdas para que o maior número possa melhorar a sua condição. Mudanças deste tipo são jogos de soma positiva -há um benefício líquido para sociedade como um todo-, mas com perdedores.
Acabar com a inflação é um exemplo claro de melhoria não-paretiana. A mudança prejudica quem conseguia levar vantagem com ele, mas beneficia a esmagadora maioria que via sua renda, dignidade e paz de espírito ser corroída pela alta dos preços. As mudanças não-paretianas valem a pena sempre que os ganhos de bem-estar ou de aumento de eficiência e/ou equidade do sistema superam as perdas dos que foram prejudicados por elas.
O problema é que mudanças deste tipo envolvem conflitos. Pior: a representação dos interesses em jogo é com frequência tão distorcida que chega a bloquear o processo de mudança.
A observação do genial Maquiavel vai direto ao nervo da questão: "Não há nada mais difícil de empunhar, mais perigoso de conduzir ou de êxito mais incerto do que assumir a liderança na implantação de uma nova ordem de coisas. Isso ocorre porque o líder inovador tem como inimigos todos aqueles que se deram bem nas condições da velha ordem e um apoio apenas morno daqueles que podem vir a se dar bem na nova ordem".
Boa parte da dificuldade enfrentada pelo governo FHC em levar adiante o seu projeto de reformas modernizantes reside precisamente aí. A minoria -a contra-reforma encastelada na herança caduca da era Vargas- não quer perder o que tem, o que é natural. É difícil saber, neste caso, até onde vai a miopia e onde começa a má-fé -a fronteira exata entre a ignorância e o cinismo. Mas, em termos de resistência à mudança, quem esperaria outra coisa?
Ocorre, no entanto, que os interesses desta minoria são muito mais concentrados, concretos e vocais do que os interesses difusos e desorganizados da ampla maioria que elegeu FHC e deseja uma economia mais estável, próspera e dinâmica para o país.
Tem razão o presidente ao reiterar que "nós temos de impedir que o interesse particular se sobreponha ao interesse nacional". O problema é como lidar com a assimetria na representação parlamentar dos interesses em conflito e com a virulência da pressão exercida pela minoria histriônica que tem tudo a perder caso as reformas se tornem realidade.
Considere, por exemplo, o caso de instituições pré-capitalistas, como os monopólios constitucionais do petróleo e das telecomunicações. A capacidade de mobilização e de pressão política dos relativamente poucos que se beneficiam da existência desta aberração nacional é muito superior à da esmagadora maioria que, como revelam todas as pesquisas de opinião, defende a privatização e quer dar uma chance à liberdade econômica no Brasil.
Para o político com assento no Congresso, o dilema é retratado com perfeição por Adam Smith: "O membro do Parlamento que apóia todas as propostas de fortalecimento de monopólios está seguro de que vai conquistar não só a reputação de entender daquele setor, mas também grande popularidade e influência junto a um grupo de pessoas cujo número e riqueza lhes confere enorme preeminência. Mas se ele, ao contrário, se opõe a tais propostas, e mais ainda se ele possui autoridade para vetá-las, nem a mais reconhecida probidade ou folha de serviços prestados à nação será suficiente para protegê-lo dos mais infames ataques e acusações, de insultos pessoais e até mesmo de perigos reais advindos da revolta insolente dos monopolistas furiosos e desapontados".
Virar a página da era Vargas é imprescindível. A assimetria na representação dos interesses em jogo é hoje a maior aliada do status quo pré-capitalista. A saída do impasse requer duas coisas: a mobilização ativa das forças sociais pró-reforma e uma postura mais firme e decidida do Executivo junto ao Congresso. A estratégia do "toma lá, dá cá" -superintendências da CEF por promessas de voto- não só não garante a aprovação das reformas como aumenta o apetite dos políticos por mais concessões.

Texto Anterior: Inflação em alta é maior problema do Real
Próximo Texto: Auxiliar de Malan diz que governo não esgotou aperto
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.