São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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A HISTÓRIA NEGATIVA

BARBARA FREITAG; SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA

SERGIO PAULO ROUANET
Freitag - No máximo, tivemos uma teoria do imperialismo, que agora -como o senhor disse- revelou suas fraquezas e fracassou.
Rouanet - Sim, e o mesmo ocorre com a teoria da dependência. Creio que ninguém a defende mais hoje com muita convicção. Ainda que se deva dizer que a teoria da dependência representa um certo progresso com relação à teoria da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), defendida por Raúl Prebisch.
Como o sr. sabe, Prebisch foi o diretor da Cepal, que formulou uma teoria da deterioração secular da relação de trocas, que pressupunha que os atores do sistema eram os Estados nacionais. Em vez de lutas de classe dentro de cada Estado, havia um conflito entre Estados ricos e pobres. Eram as nações que eram exploradas e que perdiam mais-valia.
O que Faletto & Cardoso fizeram foi reformular essa teoria um tanto primitiva de modo mais diferenciado, na medida em que não eram apenas os Estados nacionais que eram agentes e objetos da exploração, mas, dentro de cada um deles, as classes e as frações de classe.
Freitag - Não existe apenas um desnível Norte-Sul mas um contraste de rendas em cada sociedade e região. No Brasil, por exemplo, é o contraste entre São Paulo e o Nordeste, e, dentro do Nordeste, o contraste entre hotéis de luxo e situações insuportáveis de pobreza.
Habermas - Vejo nisso o futuro da nossa própria sociedade. Isso significa que estamos abrindo mão dos últimos resíduos do igualitarismo inerente ao movimento operário europeu e também dos últimos restos da rede de solidariedade criada pelo Estado nacional, através, por exemplo, de instrumentos fiscais.
Depois que voltei do Brasil, e principalmente do Peru, dei-me conta de que em Starnberg vivo, por assim dizer, no ápice do ápice; mas também percebi que teremos em nossos próprios países um desnível cada vez maior. Esse não pode ser um futuro com o qual devamos conviver!
Mas estamos falando de um tema sobre o qual, infelizmente, não posso dizer grande coisa. Lamento extraordinariamente que minha educação tenha seguido rumos diferentes. Eu deveria ter sido economista. Agora é tarde! Não quero me esquivar, mas agora é a vez dos especialistas. Talvez eu ainda possa inspirar algumas pessoas a se especializarem nessa área.
Freitag - O sr. não vê na América, que o sr. conhece tão bem, sinais de que estejam surgindo pensadores interessados nessas questões práticas, que possam formular a teoria político-econômica da qual sente falta?
Habermas - Só posso esperar que essa teoria já exista. E que chegue imediatamente a um público científico mais amplo: na sociologia, na filosofia e, sobretudo, nas publicações de maior difusão. Eu, pelo menos, não a conheço.
Rouanet - Voltando à situação teórica neste fim de milênio, li sua conversa com Adam Michnik no "The New York Review of Books" (24 de março de 1994) e encontrei uma frase sua muito interessante: "Aprendi que o positivismo é um dos elementos mais estáveis na tradição do iluminismo"...
Habermas - ... Em que contexto eu disso isso?
Rouanet - No contexto do positivismo na Polônia. Como explica o sr. essa avaliação favorável, considerando sua posição desde a época do "Controvérsia sobre o Positivismo" ("Positivismusstreit") nos anos 60?
Habermas - A explicação é histórica. Historicamente, é um fato que os positivistas lógicos e também os jurídicos, como Kelsen, sempre foram politicamente íntegros. Em parte eram judeus que foram forçados a emigrar, mas já eram democratas antes de serem estigmatizados como "inimigos" pelos nazistas. E isto não somente não era usual nas universidades alemãs, como era mais a exceção que a regra.
Neurath era socialista, Schlick, um democrata. Enquanto, por outro lado, os hegelianos -e digo isto contra a minha própria tradição-, em grande parte, tornaram-se nazistas. Toda a Escola Jurídica de Kiel, com Forsthoff à frente, era hegeliana.
É preciso reconhecer que existe no empirismo e no positivismo um elemento de racionalidade, talvez insuficientes do nosso ponto de vista, mas que, pelo menos naquele tempo, -nos anos 20 até o início dos anos 30- provavelmente imunizou seus partidários contra o nazismo, mais eficazmente que, por exemplo, os hegelianos. Com os kantianos a situação é diferente. Há muitos kantianos de esquerda e liberais, como sabemos.
Cassirer, por exemplo, foi um deles. Ele foi o primeiro reitor judeu de uma universidade alemã (o segundo só foi nomeado nos anos 50) e fez um discurso político, como reitor, em defesa da República. Eu diria, portanto, da tradição kantiana, o mesmo que disse da tradição do positivismo.
Naturalmente, são afirmações probabilísticas. Infelizmente, o hegelianismo ... Não quero dizer com isso que não tenha havido hegelianos de esquerda ou liberais. Mas os hegelianos sempre foram... mais vulneráveis. Acho que os hegelianos que sucumbiram ao fascismo e às ideologias românticas nunca entenderam o que Hegel sempre repetia, isto é, que é preciso ter compreendido e aceito a razão iluminista antes de aceder à razão no sentido da filosofia hegeliana.
Rouanet - Uma tendência teórica que vem se difundido cada vez mais é a ênfase sobre contextos particulares, em oposição às grandes totalizações do passado, o que tem certas implicações relativistas e irracionalistas.
Habermas - Deve-se admitir que o contextualismo, para usar uma terminologia filosófica, é naturalmente muito anterior ao período pós-89. Ironicamente, pode-se até dizer que ele remonta ao movimento de maio de 1968, se considerarmos as correntes pós-modernas. É um itinerário que passa pela crítica da razão e pelo pós-modernismo, que, por sua vez, desemboca no contextualismo.
O problema é mais antigo que 1989, quando ocorreu a desagregação da União Soviética. Esse particularismo faz parte, portanto, dos problemas que surgiram independentemente dessa constelação. Ao mesmo tempo, tenho a impressão de que Derrida e os discípulos de Foucault -responsáveis pelas únicas teorias verdadeiramente interessantes do pós-modernismo, do ponto de vista filosófico- devem estar assustados, agora, com o que está acontecendo na Iugoslávia, na Rússia e em outras regiões. Certamente, assustam-se com as implicações normativas particularistas.
Rouanet - Embora, é claro, não sejam intelectualmente responsáveis pelo que está acontecendo, os sérvios não leram Derrida. Mas, é verdade que a "episteme" é a mesma: a glorificação do particularismo. O que tem origens até mais nobres, como Walter Benjamin, que defendeu o método "fragmentário". Mesmo Adorno fez a apologia do particular.
Habermas - Aqui, eu seria cauteloso. É preciso consultar os textos. No caso de Benjamin, não estou certo de que ele tenha formulado essa questão de modo sempre prudente, pelo menos nos anos 20, antes que os nazistas chegassem ao poder. No ensaio sobre Sorel, por exemplo, ele não foi muito cuidadoso. Mas quando ele viu os nazistas se aproximarem, creio que ele passou a defender sempre o universalismo normativo.
Em todo caso, eu diria que isso é absolutamente verdade para Adorno. Para ele, o particular significava sempre o individual, o inefavelmente individual, que sempre pode ser protegido por um individualismo normativo. Deve-se entender que seu individualismo e seu universalismo sempre se pressupõem mutuamente. Ele defende o singular-universal, que faz parte da tradição iluminista, e não o singular-coletivo, que constitui uma herança romântica.
Freitag - "O todo é o total, o totalitário". Era isso, talvez, que Adorno estava opondo ao particular.
Habermas - Sim, mas eu acho que Adorno foi tão longe em sua crítica da razão -Horkheimer também-, que ele chegou ao ponto de encarar com ceticismo o universalismo normativo. Isto é verdade. Mas, por outro lado, ele sempre aderiu a um conceito forte de razão, no sentido de uma força negadora. Ele nunca foi um pós-moderno.
Rouanet - Mas existe hoje uma recepção pós-moderna da "Dialética do Iluminismo".
Habermas - Sim, isto é horrível. Horrível. Sim, sim, acho isso inteiramente inaceitável.
Rouanet - Não é mais a autocrítica da razão, mas uma crítica dirigida contra a razão. Para Adorno, a crítica do Iluminismo era um trabalho do próprio Iluminismo.
Freitag - O sr. escreveu um ensaio no livro "After the Fall" (Depois da Queda), título esplêndido em sua ambiguidade, que alude ao mesmo tempo à queda do Muro e ao Pecado Original.
Rouanet - O fim da inocência...
Freitag - Sim, esse livro mostra que havia uma absoluta perplexidade e ignorância por parte de todos: dos políticos, dos intelectuais, dos sociólogos, dos filósofos. Ninguém contava com o fim do marxismo, na forma do "socialismo realmente existente".
Habermas - Sim. Mas gostaria de fazer uma pequena ressalva. Eu fiquei tão surpreendido como todos os outros, não vou negar isto. Mas, sobretudo aqui na Alemanha, surgiu em consequência disso uma estranha mistura de dois estados de espírito: uma sensação de partida para um mundo novo e a sensação de que um mundo tinha acabado.
Isto é, as pessoas pensaram que, agora, estavam confrontadas com uma situação completamente nova, que exigia respostas completamente novas. Isso não é inteiramente falso, mas isso também não é inteiramente correto. Não é correto, porque existe uma considerável continuidade dos velhos problemas, que nós simplesmente empurramos para a frente. O problema sobre o qual estamos falando agora só tem a ver com o colapso da União Soviética intelectualmente, mas não na realidade.
Na realidade, temos este problema desde o começo dos anos 80, quando foram adotadas no mundo inteiro soluções neoliberais, segundo as quais nada funciona fora do mecanismo de mercado. Quero dizer com isso, que esses problemas não são de hoje. Eu pertenço aos que duvidam de que essa exigência de respostas inteiramente novas seja justificada.
Por exemplo, os conflitos na Iugoslávia, na Tchetchênia, etc, são realmente uma catástrofe! É claro! E ninguém pode dizer que poderia ter pensado nisso em 1985, simplesmente porque não pensávamos no colapso do socialismo real. Mas, depois que ele desmoronou, não é tão novo e tão surpreendente que povos inteiros recaiam em condições de anomia, do ponto de vista social e político, e que eles, mais uma vez, como tem ocorrido há séculos, ou pelo menos desde o século 19, se apeguem a características naturais.
É a única coisa que lhes resta: cor da pele, religião, raça, origem familiar, idiotices étnicas, em geral. Nada disso é tão surpreendente. Mas, do ponto de vista econômico, aí sim, temos uma nova situação, ligada ao processo de globalização. Também a globalização na comunicação é um novo desafio.
Rouanet - Depois do conflito Leste-Oeste, talvez reste apenas o conflito Norte-Sul. Mas é possível que a verdadeira polarização do nosso tempo seja a que se dá entre tendências universalistas e particularistas. Por um lado, tendências universalistas, como a globalização do poder, da tecnologia, da comunicação por satélites, o tratamento internacional de questões como os direitos humanos, a ecologia.
E, por outro lado, forças contrárias, que tentam neutralizar essas tendências universalizantes, como, por exemplo, o renascimento do nacionalismo...
Habermas - O fundamentalismo ...
Rouanet - ... E a supervalorização das culturas. Num certo momento, falou-se no "over-socialized man"; hoje, creio que se pode falar em um "over-culturalized man". Existe, em minha opinião, uma sobrevalorização da cultura, como se ela fosse a moldura principal ou exclusiva para o crescimento do homem. É a atitude subjacente ao "politicamente correto". Portanto, o campo particularista -a nação, a cultura, a etnicidade, o fundamentalismo, um certo feminismo que deixou de ser iluminista, no sentido da igualdade de homens e mulheres, e insiste agora no culto da diferença. E, opondo-se a ele, o campo do universalismo. Neste, a igualdade; naquele, a diferença. O sr. concordaria com essa análise?
Habermas - Sim, com exceção do feminismo, que tem inúmeros rostos, acho a sua análise excelente! Apenas diferenciaria as expressões universalismo e particularismo mais uma vez, distinguindo entre critérios normativos e tecnológicos. O que o sr. descreveu é um universalismo tecnológico, que acarreta tendências globalizantes no campo da comunicação, do mercado, das trocas; e um particularismo normativo. Acredito que, justamente, este antagonismo é devastador.
Rouanet - Sim.
Habermas - Neste caso, temos a mesma opinião, já que também se pode discernir o vínculo empírico entre essas tendências. Os fundamentalismos de todo tipo -e o nacionalismo é uma forma de fundamentalismo- são fenômenos extremos. São reações a processos de modernização que destroem vínculos tradicionais e provocam transformações de todo gênero ou que, em todo caso, criam zonas de insegurança. O pior é que tudo isso se acelera. Acho a sua análise excelente e inteiramente correta.
Mas, a partir dessa análise, a resposta crítica é evidente. O único recurso contra esse universalismo tecnológico é o universalismo normativo.
Rouanet - Precisamente.
Habermas - Não se trata, naturalmente, de uma simples reiteração retórica da importância dos direitos humanos e da necessidade de assegurar a paz e a democracia, mas de aperfeiçoar as instituições políticas que sejam capazes de enfrentar essa universalização técnica e de impor a aplicação do universalismo normativo. Tudo isso, naturalmente, é mais fácil de dizer que de fazer.
Mas, como via de acesso à análise, acho a sua proposta muito boa. Isto significa, naturalmente, que cada um de nós, em seu próprio contexto, deve lutar contra essa tendências de particularismo cultural e normativo. É uma questão prática, algo que cada um de nós pode fazer, em seu papel de intelectual ou qualquer outro.

Continua à pág. 6-8

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