São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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A HISTÓRIA NEGATIVA

BARBARA FREITAG

BARBARA FREITAG; SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA

SERGIO PAULO ROUANET
Freitag - Para chegar a esse ponto, são indispensáveis certos processos cognitivos...
Habermas - Sim. Mas se não se aceita isso, temos que abolir o Estado democrático. Isso deve ficar claro: quem não quiser isto, deve abolir o Estado de direito. O que significa, também, que a não-aceitação dessas premissas levará à abolição desse Estado. Não é fácil impedir as pessoas de terem essa atitude fundamentalista. É pois um grande problema, um problema internacional. Hoje não temos esse problema aqui. Hoje todos querem realizar os direitos humanos, não é mesmo? Por isso a resistência se desloca para outro plano: como interpretar os direitos humanos. Com isso, a questão fica muito diluída.
Rouanet - Passando agora para a Alemanha, como o vê o sr. fenômenos como o renascimento do nacionalismo, depois da queda do muro?
Habermas - Como disse antes, o fim da separação provocou na Alemanha um estado de espírito segundo o qual 89 foi uma grande ruptura, o ingresso em uma situação inteiramente nova. Esse estado de espírito produziu efeitos perniciosos na cena intelectual alemã. Esse elemento novo foi visto, simplesmente, como a possibilidade de reconstruir um estado nacional poderoso. Criou-se a tentação de voltar a uma situação anterior: o Império de Bismarck para uns, o período pré-1914, para outros, e a situação de antes de 1917 para terceiros, dependendo das interpretações adotadas por cada um. Isto é fatal! Também do ponto de vista intelectual, porque agora está surgindo uma espécie de "caça aos cadáveres" (Leichenfledderei).
Freitag - O que o sr. quer dizer com isso?
Habermas - Agora os animais de rapina farejam, em busca dos velhos, dos macróbios de cem anos, como Ernst Jünger. Por que vocês acham que ele está sendo festejado agora? As pessoas vasculham a obra de Carl Schmitt, de Jünger, de Heidegger, de Spengler... E no entanto, temos coisas novas, e elas são de natureza global. Precisamos resolver esses problemas de qualquer maneira. São esses problemas que nos obrigam a refletir sobre os limites impostos à capacidade de ação dos Estados nacionais. Tudo se passa, entre nós, como se a reconstituição do Estado nacional fosse o elemento novo, que nos promete de novo o papel de uma grande potência no coração da Europa central.
Rouanet - Daí, talvez, a resistência que tem encontrado o seu conceito de "patriotismo constitucional" (Verfassungspatriotismus), segundo o qual a lealdade básica não é devida à nação, e sim à democracia e ao estado de direito, como ele está institucionalizado na Carta Básica. Os conservadores alegam que seu conceito de patriotismo é formalista, abstrato, ligado a parágrafos e não a emoções. O que não impede que mesmo dentro da CDU haja correntes, como a representada por Geissler, bastante contrária ao nacionalismo. Acabo de ler também um artigo escrito pelo Presidente da Comissão Programática da CDU, na qual o autor diz que é a favor ao mesmo tempo do fortalecimento de uma consciência nacional e de um patriotismo vinculado a vlores (Wertgebundenenpatriotismus) e diz que esses valores são justamente os da dignidade humana, da democracia, da adesão aos princípios jurídicos consagrados no Ocidente. Em que se distingue esse patriotismo do seu "patriotismo constitucional?"
Habermas - Apenas no fato de que esses valores, para mim, não devem ser meros princípios abstratos, e sim os expressamente consagrados na ordem jurídica e na Constituição.
Rouanet - Essa referência ao Ocidente me obriga a explicar aos leitores brasileiros o que o Ocidente significa para a Alemanha. No Brasil, ele significava basicamente os EUA, que por sua vez eram a potência "imperialista" por excelência, o inimigo visceral. A Alemanha, é exatamente o contrário. A vinculação ao Ocidente, se descontarmos seus aspectos puramente militares, é progressista porque significa uma adesão aos valores democráticos. A atitude anti-ocidental corresponde ao chamado "caminho especial" (Sonderweg) da Alemanha, sua recusa tradicional de filiar-se aos valores democráticos do Ocidente e nesse sentido sempre foi identificada com a direita. Mas voltando à queda do muro, qual seu sentido simbólico para a Alemanha?
Habermas - No dia 8 de maio vou fazer uma conferência na Igreja de São Paulo (Paulskirche), em Frankfurt. E tentarei convencer meus compatriotas de que 1989 só pode permanecer uma data significativa se tomarmos a sério 1945, como a única data com a qual podemos aprender. Nesse sentido, 1989 deveria ficar na sombra de 1945. Vocês sabem que o 9 de novembro tem um duplo significa na história alemã.
Freitag - Como assim?
Habermas - Todas as coisas possíveis aconteceram no dia 9 de novembro. Por exemplo, a marcha da Feldherrenhalle, um atentato, etc. Mas as duas datas extremas são a Noite de Cristal...
Freitag - É verdade! Também foi no dia 9 de novembro!
Habermas - Sim, a noite do progrom. E a queda do muro. Minha tese é que o 9 de novembro deve conservar essa dupla inscrição.

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