São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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A HISTÓRIA NEGATIVA

BARBARA FREITAG; SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA

SERGIO PAULO ROUANET
Rouanet - De resto, essa dualidade ilustra exatamente sua tese de que a história só pode ser vista como magistra vitae enquanto fonte de experiências negativas. Podemos ficar eufóricos com a queda do Muro, mas só aprendemos com a recordação da Noite de Cristal.
Freitag - Sim. Com isso voltamos também aos meus queridos Piaget e Kohlberg. Só aprendemos através dos erros. É em cima dos erros que a criança constrói suas estruturas cognitivas.
Habermas - Sim, naturalmente. Os erros são importantes.
Freitag - O sr. escreveu muito sobre a "elaboração do passado" (Aufarbeitung der Vergangenheit) ou "processamento do passado" (Vergangenheitsbewãltigung). A questão recebe agora uma nova dimensão com o fim da DDR. Em artigo no jornal "Die Zeit, o sr. parte de ensaio de Adorno: "O que significa o processamento do passado?" e introduz uma reflexão que seguramente interessará os brasileiros. Como se manifesta hoje na Alemanha esse duplo processamento do passado?
O sr. menciona naquele artigo duas formas de processamento. Uma foi objeto de uma reflexão profunda por parte de Mitscherlich, que se referiu à incapacidade dos alemães de pós-guerra de realizarem um verdadeiro trabalho de luto (Trauerarbeit), o que impede que o passado nazista seja reflexiva e afetivamente processado. A outra forma tem a ver com a queda do Muro, ou a "guinada" (Wende) como se diz hoje, e com a reunificação. Com isso o debate entra numa nova fase. O sr. considerou essa fase como uma oportunidade especialmente importante para a elaboração ou processamento do passado. Poderia aprofundar essa idéia?
Habermas - Bem, não fui eu que inventei isto. Depois de 1989, o passado da RDA (DDR) foi imediatamente tematizado, a pretexto de investigar o papel da polícia secreta da Alemanha comunista (Stasi). Afirmou-se na ocasião, a meu ver corretamente, que há duas gerações, até os anos 60, tínhamos integrado praticamente todos os nazistas e recalcado nosso passado nacional-socialista.
E que somente com muito esforço, durante os anos 60 -vocês se lembram disso- essa recordação chegou ao espaço público sob a forma da categoria do crime. Agora, não deveríamos repetir esse erro, deveríamos dar início, desde já, a esse processo com máximo de rigor. Mas isso é uma coisa muito complicada! Por um lado, -para designar os dois extremos- vivemos num país em que podemos agir contra a esquerda, de modo mais simples e rápido, e com maior apoio majoritário, que contra a direita. Isso é bastante evidente. Foi sempre assim e continua sendo assim.
Isso coloca sob uma luz ambígua a discussão, tão rapidamente desencadeada, sobre a atuação da Stasi. Por outro lado, são justamente os intelectuais de esquerda, que durante décadas argumentaram junto à opinião pública que tínhamos agido incorretamente com relação ao passado nazista, que se sentiram compelidos a mostrar que não eram cegos do olho esquerdo, dizendo: "Bem, já que durante décadas insistimos que o passado deveria ser elaborado, então deveríamos fazê-lo agora.
Naturalmente eu partilho essa opinião e a defendi sempre. Mas nesse caso, devemos obviamente diferenciar. E é isso que torna a coisa tão difícil. Devemos deixar claro que o fascismo foi responsabilidade nossa, e que o stalinismo não foi nossa criação. Não há dúvida nenhuma, tampouco, quanto ao fato de que o governo da RDA (DDR) cometeu muitos crimes. Mas não se pode pôr tudo no mesmo plano. A segunda diferença é a seguinte: a RDA nunca provocou uma guerra. E ela jamais cometeu crimes da gravidade dos cometidos pelo regime nacional-socialista.
O terceiro argumento é que os nazistas foram apoiados por 80 a 90% da população, quase até o final da guerra. Isso não ocorreu na RDA. Temos que fazer essas diferenciações. Há ainda uma diferenciação normativa, muito difícil e com relação à qual eu não tenho nenhuma resposta unívoca. Se nós insistimos hoje, apesar de todas as diferenças, em elaborar também esse passado e se aplicarmos para isso o código penal, nesse caso estaremos cometendo uma injustiça contra os réus individualmente implicados, mesmo contra o sr. Miehlke, o ex-diretor da Stasi, que hoje está sendo condenado.
Pois não aplicamos esses critérios rigorosos aos nazistas depois de 1949. Talvez o tenhamos feito com relação a um ou outro processo relativo a campos de concentração, mas esses casos não valem para a FDA. Aplicamos o direito penal com relação a policiais que atiraram contra fugitivos, contra fraudes eleitorais, etc. Esses delitos em si são suficientemente graves.
Não quero ser mal interpretado a esse respeito. Eu nunca me identifiquei com este regime. Não tenho nenhuma razão para inocentá-lo. Mas o fato é que os acusados das RDA estão sendo julgados com maior rigor que os da Alemanha nazista. É uma questão normativamente de difícil solução. A comparação histórica mostra que eles estão sendo tratados de um modo diferente do que os envolvidos em situações semelhantes no passado.
Entretanto, se levamos em conta as consequências do silenciamento do passado nazista para pelo menos duas gerações, se levamos em conta o fato de que a revolta dos jovens teve como foco esse tema, além da guerra do Vietnã, se levamos em conta o envenenamento de toda uma cultura política pela prática de reprimir esse passado político criminoso, se levamos em conta tudo isso, temos que advogar uma política de não esconder nada debaixo do tapete, que não omita nada do passado da RDA. É um argumento político, no sentido próprio, um argumento de higiene política.
Devemos observar também -esta é a última diferenciação- que os critérios de avaliação não estão no Código Penal, mas resultaram do debate público, do debate moral e político, e se tornaram mais severos justamente como reação à prática de recalcar o passado nazista. Nossos padrões são agora extremamente elevados. O que nos autoriza a perguntar se não precisamos compensar essa diferença de tratamento por alguma flexibilidade. Devemos ser flexíveis, porque adquirimos estes critérios lidando com questões completamente diferentes. Vocês vêem como tudo isso é complicado.
Freitag - Ainda uma questão complementar, na verdade uma questão técnica. Tenho a impressão de ter lido na imprensa que o senhor tinha participado de uma comissão especial do parlamento sobre o passado da Stasi. Essa impressão é correta?
Habermas - Sim, foi um "hearing" do Parlamento, dirigido a todos os especialistas imagináveis. No final houve um último "hearing" cujo sentido era "o que fazer com os resultados dessa enquete?" Primeiro eu recusei o convite porque os partidos tinha convidado os seus próprios peritos. A CDU tinha convidado Nolte. Então eu disse: "Vocês não podem fazer isso comigo!" Então eles retiraram o convite a Nolte e eu concordei em apresentar a minha resposta.
Rouanet - Chegamos finalmente ao Brasil, o que talvez os leitores brasileiros achem que já não era sem tempo. Não poderia o senhor dizer algo de específico sobre a viagem que o senhor fez ao Brasil, em 1989, comentando por exemplo as pessoas que o senhor conheceu, o que achou do país, etc?
Habermas - Só poderia dizer coisas ingênuas. Nunca fiz uma cidade como São Paulo! Nunca! Creio que ela é única! Bem, eu nunca estive no Cairo ou em Calcutá. Mas devem ser cidades bastante decadentes. Tenho poucos pontos de comparação. Conheço Tóquio e Nova York, Londres, Paris... Mas...
Freitag - A Cidade do México talvez tenha afinidades com São Paulo...
Habermas - Não, São Paulo é realmente única. Claro, estou me baseando em uma primeira impressão. Não a conheço bem. Nunca vivi lá. Mas a primeira impressão, o que faz com que ela seja algo de único, é a coexistência espacial imediata do século 21 e de estruturas pré-modernas, de uma potência econômica gigantesca com o universo das favelas. Elas não estão na periferia, mas no centro, o que implode qualquer conceito europeu de cidade. Isto é único!
Não sei o que significa viver nessa cidade. Obviamente há também coisas negativas, é claro. Normalmente vivemos sempre no Primeiro Mundo, mesmo quando estamos no Terceiro. Mas vi, num hotel, uma vista impressionante da cidade. Os arranha-céus ocupavam todo o horizonte. Vocês conhecem Manhattan, é diferente...
Freitag - Sim, em São Paulo se vêem muitas Manhattans.
Habermas - Em segundo lugar, eu tive também a impressão de que o Brasil é intelectualmente enorme e diverso, muito mais complexo que um país europeu homogêneo. E também infinitamente vivo! Posso imaginar que viver em um país assim estimula, mais do que na Europa, a emergência de novas idéias.
Rouanet - Gostaria de voltar à questão cultural, agora no contexto brasileiro. Para nós um conceito como o do multiculturalismo, tão em moda hoje em dia, corresponde a uma realidade antiquíssima. O Brasil nasceu sobre o signo do multiculturalismo. Primeiro, como os portugueses, os índios e os negros...
Freitag - Depois vieram os franceses, os holandeses...
Rouanet - ... Portanto, o que quero dizer é que o caminho brasileiro para o universalismo, para a realização do ideal iluminista de uma cultura mundial, passa pelo transculturalismo.
Habermas - Sim, é naturalmente uma outra possibilidade. Talvez seja realmente a grande contribuição do Brasil para a nova cultura mundial.

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