São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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O desafio maior da academia

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em boa hora o Mais! discute a universidade e seus desafios. Como, porém, discordo em alguns tópicos do "Ponto Crítico" de meu amigo Arthur Nestrovski (16/4), vou ao debate, esperando que outros ainda o alimentem.
Primeiro: hoje o grande desafio da Universidade está em sua relação com o mundo fora dela. Ela assim se distingue de sua avó medieval, que em certa medida constituía um mundo em si mesmo, uma "universitas", "l'universo in sé", poderíamos dizer, parodiando um verso da "Traviata".
Mas este mundo extramuros não é só a empresa, como erroneamente pensam alguns. A universidade tem de se relacionar sem preconceitos com a empresa, mas não pode esquecer que "a sociedade" inclui outras organizações sociais, como sindicatos, clubes, associações culturais e de vizinhança etc.
A empresa, pública ou privada, é insubstituível enquanto a melhor forma de organizar a produção de bens e uma das mais eficazes para sua distribuição. A academia deve aproximar-se dela, a fim de ligar a ciência e tecnologia ao mundo da produção. No Brasil, o desafio consiste em viabilizar, junto aos empresários, a tecnologia enquanto conceito, substituindo a compra de "caixas pretas" prontas do estrangeiro. E talvez a contribuição da academia para o deslanche econômico deva começar pela pequena e média empresa.
Mas a universidade deve deixar claro que a sociedade e o mundo não se reduzem à empresa. Há inúmeras formas de sociabilidade e espiritualidade que a ultrapassam. Faz parte do sentido crítico da universidade alimentá-las. Reluto, assim, em subordinar a atividade cultural ao patrocínio empresarial, como solução mágica.
É ótimo que empresas ou indivíduos banquem a arte, mas apostar no mecenato como sucedâneo de um apoio oficial, com recursos de impostos e critérios públicos e transparentes, não me parece uma solução generalizável.
Segundo ponto: por melhores que sejam as novas linguagens, como as das redes eletrônicas, é insubstituível a formação tradicional da pessoa na universidade, expondo-se durante alguns anos, geralmente no começo da idade adulta, a pelo menos meio período diário de convívio com mestres e colegas. Isto se chama vida ou vivência universitária. Devemos inventar novos meios, para uma formação permanente, para uma universidade aberta ou à distância -mas nada se compara ao impacto que um curso regular pode e deve ter na construção de um ser humano.
Devemos multiplicar cursos que dêem à gente afastada da academia chance de frequentá-la, usar as novas linguagens para levar a universidade a todos os cantos da sociedade (afinal, a Internet não é uma criação universitária?). Mas não esqueçamos que o eixo da universidade é feito de longa convivência.
Terceiro: a avaliação da universidade é essencial. Quem trabalha não deve temê-la. Se a escola é pública, esse procedimento confere se o dinheiro da sociedade é bem investido. Se é privada, reduz o alcance das arapucas.
Mas ninguém deve sequer pensar que uma avaliação séria constitua apenas um meio de gastar menos dinheiro com o ensino superior. Ele é caro por definição. É verdade que no Brasil se prefere pôr dinheiro no consumo privado (o carro novo) do que no ser humano (educação e saúde). Mas isso tem de mudar, até por uma razão utilitária: sem gente saudável e estudada o país não competirá internacionalmente.
Por isso, sejamos claros: a avaliação visa a melhorar o investimento, sobretudo nos excelentes recursos humanos de que dispõem as universidades e institutos de pesquisa. Identificando o que temos de bom e ótimo, aprenderemos onde gastar dinheiro melhor. Gastar, até, mais dinheiro -mas tendo os resultados que o Brasil hoje deixa de colher. Afinal, nosso país não economiza centenas de milhões de dólares por ano graças a uma pesquisadora que descobriu meios mais eficientes de fixar nitrogênio no solo? Isso é pouco?
Mais ainda. Se a avaliação descobre que uma instituição está fraca, isto não implica necessariamente economia imediata. Pode ser o caso, como suponho ocorra na Amazônia, de estudar como desenvolver a universidade em questão. Sempre devemos ter no horizonte um futuro, no qual façamos render ao máximo esse centro de pesquisa e formação humana que é a universidade. Este é o sentido da avaliação, não o de cortar dinheiro mecanicamente.
Quarto e último ponto: a eleição dos reitores. Cresce o consenso de que ela não pode ser dominada pelos estudantes e funcionários. Mas isso não quer dizer que baste determinar que os professores tenham pelo menos 70% dos votos, como quer o governo. Por várias razões.
Acima de tudo, porque a grande divisão no país não está entre professores, de um lado, portadores da ciência, e de outro, alunos e funcionários adeptos da boa vida. Há vários conflitos -legítimos- na academia, mas ouso dizer que o principal distingue instituições de maior e menor qualidade. As primeiras até mereceriam ser liberadas da tutela que se chama lista tríplice: por que não deixar que elejam seus dirigentes, reconhecendo assim sua qualidade? O essencial hoje não é o desempenho? Se uma escola funciona bem, por que não acreditar em sua capacidade de escolher seu destino?
Já nas instituições fracas, é de se supor que o sejam, em parte, por terem mestres fracos. E neste caso os alunos, por terem contato constante com o docente, conhecendo suas falhas, podem ser ótima ponta de lança para a melhora do ensino. Claro que isso não legitima práticas duvidosas, como a de "um homem, um voto", que afoga os professores em meio a funcionários e alunos. Mas deveríamos aprender a dosar exigências distintas, tentando reunir o que há de bom no mérito, quando autêntico, e na revolta, quando legítima.
Finalmente, a eleição direta na universidade, apesar de tão criticada, tem uma qualidade notável. Ela instaura o debate público de projetos. Reduz a maledicência dos corredores, mais ou menos inevitável quando o processo não se dá de público, e obriga a assumir diagnósticos e compromissos. Ela tem inúmeros defeitos, entre eles o de favorecer a demagogia.
Mas, se sofrer as correções necessárias -entre as quais exigir-se uma titulação mínima de doutor para os cargos de direção, estabelecer-se uma proporção adequada entre professores, alunos, funcionários, e incluir-se no processo a sociedade externa ao campus, que aqui é a grande ausente dele-, pode ajudar a desenhar uma universidade mais ágil, porém fiel a suas duas vocações essenciais, pesquisar o novo e formar seres humanos.

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