São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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CONVERSA COM HABERMAS

SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE STARNBERG

Que fazer quando se vai entrevistar alguém e o entrevistado não aparece, quando se quer dialogar com um teórico do diálogo e não há com quem dialogar?
Foram as perguntas que nos ocorreram quando chegamos à estação de Starnberg (Alemanha). Nenhum senhor alto e de cabelos brancos veio ao nosso encontro. E, no entanto, Jürgen Habermas dera a Barbara instruções precisas. Deveríamos partir de Munique às 14h e 10min e ele estaria à nossa espera por volta das 15h, na pequena estação bávara.
Arrastamos até a cabine telefônica mais próxima nossa bagagem, pesadíssima, cheia de gravadores, fitas e livros. Um dos telefones só funcionava com cartão magnético, que, bem entendido, não tínhamos. Tudo bem: o outro telefone funcionava com moedas. Afinal, era um telefone de roça.
Lançamos na fenda os nossos tostões, "pfennig por "pfennig. Do outro lado, respondeu o que nos pareceu a voz de Habermas, remota como se viesse de fora do Sistema Solar. Por sua vez, a voz de Barbara deve ter atravessado várias galáxias para chegar até Habermas, porque ele se limitava a repetir, desesperadamente: "mais alto, mais alto!"
Resignados, decidimos tomar um táxi. Mas estávamos pessimistas. Decerto, a voz extragalática não era a de Habermas, e sim a de um corvo eletrônico que, em vez de dizer "never more", só sabia dizer: "Mais alto, mais alto!", talvez para significar o movimento ascensional do Espírito. Habermas, este, devia estar no Tibete, fazendo observações sobre a competência discursiva do Abominável Homem das Neves.
Nosso pessimismo não diminuiu quando percebemos que o táxi estava dando voltas sobre voltas, sem conseguir acerta a casa. O número 8-B existia, não existia? Depois de 15 voltas, descobrimos que existia, sim, mas num lugar inesperado, pelo menos para nosso motorista -entre o 8-A e o 8-C.
Habermas não estava no Tibete. Abriu-nos a porta, com um cabelo branquíssimo, camisa esporte e um sorriso exausto.
Ele tinha boas razões para estar exausto. Estivera na estação às 14h, e não às 15h, e tinha ficando esperando durante mais de 20 minutos. Barbara jurou que nossa chegada fora marcada para as 15h. Habermas acreditou, ou pensou que era uma desculpa esfarrapada de brasileiros impontuais? Por lealdade conjugal, aceitei a tese de minha mulher, mas, no fundo, achei possível a versão de Habermas.
Graças à simpatia do nosso anfitrião, não houve nenhum mal-estar. Segundo ele, há 20 anos não dava entrevista oral, e só abrira uma exceção por se tratar de Barbara, que ele conhecia desde 1974 e mediatizara sua viagem ao Brasil. Barbara deu uma risada sonora e disse que publicaria isso na Folha, para aumentar seu ibope.
Entramos numa bela sala, com uma parede coberta de livros e outra, de vidro, dando para um bosque ainda friorento, mas já banhado por um sol de quase primavera. Quisemos montar nossa quinquilharia eletrônica e pedimos dados sobre volts e tensões -"Spannungen", em alemão. Habermas arregalou os olhos e não entendeu nada. "Spannungen", para ele, eram tensões sociais, como as que se produziam entre alemães e turcos, e tinham mais a ver com correntes migratórias que com correntes elétricas. Mais prática, Ute deu a informação solicitada. Foi buscar chá, que Habermas tomou com algumas gotas de rum, e uma torta de maçã.
Sentamo-nos todos à mesa e a conversa começou. O pequeno defeito de articulação de Habermas não impediu que ele falasse um alemão fluente e inteligível. Fiquei impressionado com sua empatia, sua atenção aos argumentos do interlocutor. A capacidade comunicativa, para ele, é um atributo pessoal, antes de ser um conceito teórico.
Tínhamos preparado um roteiro, mas a entrevista logo se transformou numa conversa descontraída, em que os temas iam se sucedendo espontaneamente: hermenêutica, positivismo, Iluminismo, Contra-Iluminismo, moralidade, democracia, direitos humanos, multiculturalismo, globalização...
Sabíamos que o casal tinha um compromisso em Munique, e decidimos encerrar a conversa. Tivemos a impressão (ou seria narcisismo nosso?) de que Habermas ficou desapontado com o fim do bate-papo. Queríamos que eles nos deixassem na estação, mas fizeram questão de nos levar até Munique. Ute preferiu dirigir: quando conversava, explicou ela, Jürgen costumava se distrair no volante.
No carro, Habermas pediu que eu não o chamasse de Herr Professor. Era constrangedor para alguém que tinha lutado contra as hierarquias universitárias no movimento de 1968. A conversa prosseguiu. No dia seguinte, ele receberia o jornalista polonês Adam Michnik, antigo militante da Solidariedade. No fim do ano, viajaria aos Estados Unidos, para cumprir vários compromissos acadêmicos.
É evidente que, apesar de aposentado, não soou para ele a hora do repouso. Mas refleti com os meus botões que, por mais ocupados que estivessem, cada um em sua área, talvez dois dos maiores cientistas sociais do mundo pudessem encontrar-se, por ocasião da futura visita do presidente do Brasil à Alemanha: o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o sociólogo Jürgen Habermas.
Meus botões responderam que tudo isso estava ainda no futuro. Minha tarefa imediata, disseram eles, severamente, era despedir-me de Habermas. Então até breve, Herr Professor -quero dizer, Professor- ou melhor... Em todo caso, obrigado, Ute e Jürgen Habermas, e até à vista.

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