São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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Danielle Mitterrand prevê era de direitos

ANDRÉ FONTENELLE
DE PARIS

Neste mês de maio, o presidente da França, François Mitterrand, 78, encerra 14 anos de governo e se instala em um apartamento parisiense para escrever um livro.
Sua mulher, Danielle, 70, continuará o trabalho que realiza desde 1986 à frente da France-Libertés ("França-Liberdades), a associação de defesa dos direitos humanos por ela criada.
As causas que defende vão dos meninos de rua brasileiros aos direitos dos tibetanos sob ocupação chinesa ou dos curdos, nação que vive sob opressão na Turquia, no Iraque e no Irã.
Na defesa dos curdos ela quase perdeu a vida: em 1992, no Iraque, quatro pessoas morreram em atentado à sua comitiva.
Em julho do ano passado, ela foi operada do coração. Aos poucos, retomou suas atividades e aparenta boa saúde.
Seu marido sofre de câncer na próstata, em estágio avançado, e teve que desmentir rumores sobre seu estado nas últimas semanas.
Danielle Mitterrand não escapa a críticas a suas posições, em particular no caso de Cuba: defensora do regime de Fidel Castro, ela o convidou a Paris em março, irritando os EUA e a direita francesa.
Ela reconhece que Cuba "não é uma democracia", mas chama a atenção para as conquistas sociais da Revolução Cubana -a começar pela "dignidade", afirma.
No escritório sem pompa da primeira-dama, na sede da France-Libertés, destacam-se duas fotos de Pierre Bérégovoy, premiê de 1992 a 1993, que se matou pouco após ter deixado o mandato, sentindo sua honra manchada por uma acusação de corrupção.
Danielle recebe com ar tímido os visitantes; seus gestos lembram um pouco os do marido. Os olhos refletem a vivacidade de seu caráter -"olhos de gata", como definiu François em uma carta, pouco depois de conhecê-la, em 1944. Os dois se casaram no mesmo ano.
Esse início valeu a François Mitterrand, no ano passado, a acusação de ter se ligado à extrema direita na juventude -ataque que Danielle rebate com veemência.
Nesta entrevista, a primeira-dama fala dos temas que a apaixonam -os direitos humanos, Cuba, a Europa-, diz estar "confiante" na vitória do socialista Lionel Jospin no segundo turno da eleição presidencial, domingo que vem, e defende o governo de seu marido.

Folha - Na sua opinião, a situação dos direitos humanos no mundo melhorou, desde 1981?
Danielle Mitterrand - Creio que hoje, neste fim de século, estamos em uma encruzilhada em que haverá uma prova de força. Há cada vez mais organizações não-governamentais, a chamada sociedade civil, pessoas que se organizam para defender os direitos humanos. A geração atual é muito sensível à noção do direito do indivíduo a viver corretamente.
Quando um movimento se desenvolve assim, há de imediato a reação dos que querem se impor pela força, pela violência. Vê-se uma espécie de exacerbação dessas forças -que já detêm o poder ou que o disputam-, que não querem entrar nessa dinâmica de respeito mútuo. Só querem se fazer respeitar pela força.
Talvez seja filosófico o que lhe digo, mas, com o tempo -porque as coisas levam muito tempo a se instalar-, creio que a consciência dos direitos humanos é mais bem defendida hoje. Em todo caso, cada vez mais indivíduos se opõem ao crescimento da violência.
Folha - Qual foi o momento mais difícil para a sra., na fundação? O atentado no Curdistão iraquiano, em 1992?
Mitterrand - (Pausa) O atentado, de fato, foi um momento particularmente difícil de viver. É verdade que eu mesma fui visada, que outros morreram em meu lugar e que isso me afetou muito. Mas isso não me impediu de continuar, porque era nossa missão.
Folha - O Curdistão é um dos casos mais complexos de que sua fundação trata. A sra. se declarou contra a criação de um Estado curdo. Qual seria a solução?
Mitterrand - Que eu seja a favor ou contra, não importa. São os próprios curdos que não são a favor da independência. Talvez alguns extremistas, mas não o conjunto da população que eu encontro e com a qual nós lutamos pelo respeito da cultura, do idioma etc. Esse é o nosso combate: dar a essa população a possibilidade de ser ela mesma, dentro das fronteiras estabelecidas.
Os curdos que encontro -e são muitos- nunca evocaram outra solução que não fosse desenvolver um espírito democrático dentro dessas fronteiras.
Folha - É mais difícil tratar de problemas que não têm muita divulgação na imprensa?
Mitterrand - Sim, é às vezes frustrante. Frequentemente, até. Mas as vozes não se perdem. Dizem que, no universo, todos os sons continuam a girar. Tudo o que se pôde dizer, defender e argumentar nesse sentido acaba por chegar ao destino. Por exemplo, esta semana houve um voto do Conselho Europeu (condenando a repressão turca à minoria curda). Eles compreenderam que a Turquia -que, mais cedo ou mais tarde, entrará no seio da Europa- não pode entrar enquanto tiver práticas tão contrárias a todas as convenções internacionais.
Folha - Sua fundação tem muitos projetos no Brasil.
Mitterrand - A atividade da fundação é, evidentemente, a ajuda, material, técnica ou financeira, a projetos concretos. Mas também é toda a rede de encontros que gera e que é muito útil para o futuro. O mundo se torna pequeno, somos todos dependentes uns dos outros. Quanto mais nos conhecermos, mais viveremos em um mundo de paz.
Foi uma satisfação quando fizemos com Cristovam Buarque um colóquio na Universidade de Brasília, sobre os apartheids no mundo. Fico contente, hoje, de ver que ele é governador (do Distrito Federal).
Folha - Há uma polêmica atualmente, no Brasil e na Argentina, sobre a anistia dada aos militares que cometeram crimes durante os regimes militares.
Mitterrand - Compreendo que parentes e amigos das vítimas não queiram virar a página. É tão compreensível. Não se deve jamais esquecer esse tipo de coisa. Mas cultivá-lo... Eu mesma fico muito dividida. Quando encontro, por exemplo, as Mães da Plaza de Mayo, que continuam, sem medir sua dor e seu tempo, que se dedicam completamente à busca de seus filhos... É preciso organizar o futuro com essa memória presente, para que tais eventos não se reproduzam.
Folha - As posições da política externa francesa não tornam mais difíceis suas intervenções em casos como os da China e da ex-Iugoslávia?
Mitterrand - Quando uma causa é justa, nada é difícil. Nós a defendemos e não paramos diante de imperativos que dizem respeito ao governo, que deve reservar seus mercados, sua diplomacia. O sr. falou da China. Os tibetanos são uma população em via de extinção. Nós falamos em nome dessa população. Nossa causa é justa e nada nos impede de persegui-la.
Que isso incomode um governo -especialmente quando a esposa do presidente é a presidente dessa organização-, é certo. Mas, na França, temos o privilégio de ter uma liberdade de expressão respeitada.
Folha - A sra. ficou surpresa com a reação à visita do líder cubano Fidel Castro? Muitas pessoas a criticaram.
Mitterrand - Muitas pessoas não, certas pessoas. Recebi mais elogios sobre Cuba que reprovações. Recebi 35 cartas de pessoas que me contestavam, às quais respondi. Não tento convencê-las, não me justifico, mas dou meus argumentos. Elas os aceitam ou não, mas me agradecem por ter respondido. Trinta e cinco não é uma onda de protestos. A imprensa quis dar destaque a esse estado de espírito.
Conheço Cuba desde 1974. Vi como Cuba podia gerir sua população antes da Guerra Fria e como ela se viu completamente carente depois, pois não tinha mais o apoio da URSS e ninguém a substituiu.
Antes de 1989, nunca a população de Cuba pedira a ninguém que viesse. Não era um país do Terceiro Mundo. Ora, desde 1989, infelizmente, a situação mudou e France-Libertés se viu em condições de responder à expectativa da população cubana, com um vasto projeto médico, de próteses para deficientes...
Nós cumprimos essa tarefa. Com o apoio financeiro da União Européia, assim como 14 outras associações, pudemos realizar os programas que nos haviam sido pedidos. Daí a entrar em uma polêmica que não tem razão de ser...
Fidel Castro, além disso, nunca foi rejeitado pela população cubana; os que o contestam são os que partiram. É compreensível que o tenham contestado. A própria família de Castro o fez, pois ele nacionalizou a propriedade de seus pais e repartiu as terras entre os camponeses.
A cada vez que fui até lá, antes e depois do fim da Guerra Fria, nunca encontrei um cubano que me dissesse: "Queremos renunciar às conquistas da revolução e voltar ao regime de Batista" (Fulgencio Batista, ditador cubano antes da revolução). Mesmo entre os opositores -porque eu também os encontrei-, disseram: "Nas conquistas da revolução não se toca."
Folha - Há violações dos direitos humanos?
Mitterrand - Não é uma democracia, é tudo que lhe digo. Há prisioneiros políticos, porque são pessoas contrárias à revolução, que vêm do exterior. Ele (Fidel) diz: "Para mim, são terroristas que vieram desestabilizar a revolução e que cometeram atentados."
Há uma missão que parte esta semana a Cuba, composta de várias associações: FIDH (Federação Internacional das Ligas de Direitos Humanos), Médicos do Mundo, France-Libertés, Americas Watch. Vão fazer sua missão com toda a imparcialidade e farão um relatório, o que não se pode fazer em muitos outros países.
Folha - Essa reação violenta não se deve à sua afirmação de que Cuba é "o máximo que o socialismo pode fazer"?
Mitterrand - Não foi isso o que eu disse. Eu disse: quando encontrei os cubanos pela primeira vez, em 1974, era o momento da grande explosão da educação nacional. Nenhuma criança era abandonada. Cada uma ensinava pais e avós a ler. A tal ponto que a população, que tinha 95% de analfabetismo, passou em cinco anos a 5% de analfabetos. Acho que é um grande avanço social.
Todos os cubanos têm direito a atendimento médico. Encontram-se nos hospitais crianças argentinas, mexicanas, venezuelanas. Acho isso um progresso social considerável.
Há creches em todos os bairros. Na França não temos isso, infelizmente. Ou um programa em que, em toda empresa de mais de dez operários, um em cada dez fazia trabalhos comunitários. É um tipo de imposto, não financeiro, mas um imposto físico de uma operária que trabalha para a comunidade e não para a empresa. Eu disse que era um avanço social do qual o socialismo pode se orgulhar.
Isso começa a ser percebido, porque muita gente vai a Cuba e muda de opinião. Só os imbecis não mudam de opinião. Ou os completamente bitolados. Percebem que tudo o que lhes disseram durante 30 anos sobre Cuba não era totalmente verdadeiro e que se pode ver Cuba de outro jeito, que não seja sob o prisma da propaganda.
Esta revolução lhes trouxe tanta coisa, pelo menos a dignidade. É verdade que em uma ilha era mais fácil realizar uma experiência bem delimitada. Se tivessem o apoio das democracias ocidentais, poderiam ter feito um exemplo de socialismo extraordinário.
Folha - Em março, a sra. não pôde entrar no Senado norte-americano. A sra. acha que foi por causa de sua posição sobre Cuba?
Mitterrand - De modo algum. Eu pude entrar. Vi todos os senadores que queria encontrar. Foi um pequeno incidente em um anexo, com um guarda, talvez, meio primário. Ele queria absolutamente me fazer passar sob o detector de metais. Ora, eu tenho um marcapasso. Mostrei um cartão indicando isso e ele insistiu. Eu disse: "Se o sr. não quer, não faz mal, eu não passo".
Pude fazer todo o trabalho a que me propusera durante essa viagem. Não houve nenhum problema. Os meios de comunicação estão sempre à procura do pequeno escândalo.
Folha - Com o fim do segundo mandato de François Mitterrand, qual é o futuro de France-Libertés? A sra. continua à frente da organização?
Mitterrand - France-Libertés é uma organização não-governamental, da qual sou a presidente-fundadora. Evidentemente, ela continua. Não há nenhum vínculo vital com a Presidência da República.
Folha - Em fevereiro, a sra. disse que esperava a vitória da esquerda na eleição presidencial, quando ninguém acreditava nela. Agora, qual é sua impressão?
Mitterrand - Estou como todo mundo. Espero o dia 7 de maio com impaciência, para saber se as chances da esquerda são concretas. Por enquanto, estamos bastante confiantes.
Folha - O resultado da extrema direita a inquieta?
Mitterrand - Sim, porque é uma linguagem que já ouvimos em outras circunstâncias e que não augura nada de bom. Eu disse há pouco que todos somos dependentes uns dos outros. Os países ricos também são dependentes dos países pobres. Eles não continuarão ricos se os países pobres continuarem a ser pobres.
Hoje, há um espaço de paz que se realiza. Após séculos de guerras sangrentas na Europa, homens e mulheres quiseram pôr um fim a isso e criar um espaço em que se respeitem uns aos outros e trabalhem juntos.
Um programa nosso, que me agrada muito, é o "passaporte europeu contra o racismo. É o primeiro ato de tomada de consciência de uma Europa que quer ser anti-racista. Soube que, esta semana, o Parlamento Europeu retomou o princípio, criou seu próprio passaporte e está trabalhando por uma legislação comum, para toda a Europa, contra o racismo. É uma consequência dessa vontade de constituir uma Europa social e anti-racista.
Folha - Muitos esquerdistas ficaram decepcionados com certos aspectos dos dois mandatos de François Mitterrand. E dizem que a sra. é mais de esquerda que seu marido...
Mitterrand - (Sorri) Não. Sabe, são as pessoas de direita que dizem isso. Não é verdade, de modo algum. Outro dia, me deram um documento que dizia "Obrigado, François Mitterrand, pelo balanço positivo da esquerda. Eu lhe asseguro que, ao lê-lo, você se sente bastante orgulhoso, afinal. Há sempre pessoas que criticam, muito bem, mas, no fim das contas, a geração Mitterrand, o que ela conheceu? Um espaço de paz social, de liberdade.
Folha - Como vão sua saúde e a de seu marido?
Mitterrand - Eu vou bem, me recuperei bem. Retomei todas as minhas atividades. E quanto a François, isso segue seu curso. É uma doença perniciosa, mas que, por enquanto, não provoca preocupações particulares.
Folha - De tudo o que foi dito sobre o passado político e pessoal do presidente, o que a chocou mais?
Mitterrand - Oh, não, nada me chocou, pois eu conheço a vida de François. Procure, simplesmente, a quem isso poderia beneficiar, no momento em que essa campanha foi montada, e terá a resposta.

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