São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Três vícios de comportamento

ROBERTO CAMPOS

Erramos: 10/05/95
O artigo de Roberto de Campos publicado pela Folha (pág. 1-4) no último domingo saiu com truncamento no sexto parágrafo. O trecho correto é: "Se quisermos receber investimentos, precisamos deixar de ser piratas preguiçosos e pingentes tecnológicos. O terceiro vício é o complexo de avestruz que se revela na revolta contra as emendas constitucionais relativas à Previdência Social. O atual sistema tem três defeitos: sofre de uma dinâmica perversa -os beneficiários crescem muito mais rapidamente que os contribuintes- que em breve o levará à falência. É injusto com os pobres, que recebem aposentadorias miseráveis para financiar aposentadorias precoces. E não serve de alavancagem para investimento produtivos. A crise do Estado assistencial é mundial. O candidato presidencial Chirac, o presidente do Bundesbank e o premiê da Itália advogam o abandono de fundos estatais, baseados em tributos, em favor de pensões privadas, pagas por poupança pessoal."
``É opção brasileira ignorar o protocolo da modernidade. É opção do mundo ignorar o Brasil. Chega de cair no erro. É tempo de cair na verdade."
(Do diário de um diplomata)

Noto na paisagem nacional três vícios de comportamento que dificultam a modernização do país. Modernização tanto mais necessária quanto, na década passada, sofremos dois retrocessos: a política de informática, pela qual nos auto-excluímos da corrida tecnológica, e a Constituição de 1988. Esta, ao manter e ampliar monopólios estatais, justifica a definição de um jornalista inglês sobre ``serviços públicos" no Brasil: ``são os serviços que fazem falta ao público"...
Os três vícios a que me referi são:
a diarréia normativa;
a pirataria preguiçosa;
o complexo de avestruz.
Infelizmente, a votação provável das emendas constitucionais sobre flexibilização de monopólios não nos livrará imediatamente da insolência dos petroleiros grevistas da CUT e da mortificante ineficiência dos serviços telefônicos. O Brasil não se modernizará à vista e sim a prestações. No caso do petróleo, tudo fica dependendo de lei regulamentadora que substituirá a estulta lei que criou o monopólio da Petrossauro. Racionalmente, não há porque subordinar a concessão de refinarias privadas ou a contratação de transportes a qualquer nova lei, pois foram passadas recentemente leis sobre licitações e concessões. Com elas, poderíamos rapidamente aliviar o Tesouro falido e gerar empregos para a juventude universitária. A modernização a prestações permitirá indecente sobrevida aos dinossauros. No caso do gás canalizado, a coisa é pior: derroga-se o monopólio permanente dos Estados, mas mantém-se o monopólio temporário em favor das concessionárias atuais, carentes de recursos e agilidade gerencial.
Nas telecomunicações é o Congresso que, possuído de diarréia normativa, insiste em exigir regulamentação. Não há falta de diplomas legais sobre os quais basear a imediata abertura, ao setor privado, da telefonia celular, da transmissão de dados e outros serviços adicionados. Além das leis já citadas, existe o vetusto Código de Telecomunicações e a Lei de Radiofonia e TV a Cabo. Sob certos aspectos, é prematuro tentar-se reformular o modelo de telecomunicações antes que amaine o vendaval tecnológico que sacode o mundo, do qual emergirão novos modelos. Estão se diluindo as fronteiras tradicionais entre telefonia básica, longa distância, TV a cabo e transmissão por computadores (via Internet e rodovias de informação). Bastaria, no momento, observar dois princípios na privatização: maximizar a competição e separar nitidamente a função operadora, a cargo dos atuais monopólios, da função reguladora, a cargo do governo, em consulta com os usuários.
O monopólio brasileiro é artigo de museu, de vez que mesmo os países ex-socialistas já admitem a concorrência privada na telefonia celular, na transmissão de dados e nos serviços de valor adicionado. Cabe, aliás, notar que o ex-presidente Collor, cujos impulsos modernizantes a história registrará com justiça, havia iniciado a abertura da chamada ``banda B" da telefonia à iniciativa privada, através do decreto nº 177/91. O PDT, fiel à sua clientela corporativista, recorreu ao Supremo Tribunal Federal, alegando a inconstitucionalidade do decreto. O processo, com voto do relator rejeitando essa alegação, jaz há mais de três anos na gaveta do ministro Sepúlveda Pertence. Isso constitui crime de responsabilidade por patente desídia no cumprimento dos deveres do cargo (lei nº 1.079/50, art. 39, item 4º). Os historiadores brasileiros saberão que a defasagem tecnológica do Brasil reflete menos uma insuficiência intelectual do que miúdas sabotagens burocráticas...
Em matéria de telecomunicações, parece termos escapado de dois perigos. O primeiro seria a conversão, por alguns desejada, dos dinossauros estatais Telebrás e Embratel em entidades reguladoras. Trata-se de empresas viciadas pela cultura monopolística e, portanto, incapazes de supervisionar a guinada competitiva. A Telebrás é estelionatária, pois vendeu telefones sem entregá-los, e a Embratel é um monopólio despótico, ineficiente e caro. O segundo perigo, que parece afastado, é a pretensão da Embratel de monopolizar o acesso à Internet. Essa organização espontânea, nascida sob o signo da liberdade, seria asfixiada, ``cruz-credo", por um pedágio cobrado para sustentar privilégios corporativistas!
O segundo vício de comportamento é a pirataria preguiçosa, revelada na longa e tortuosa gestação da Lei de Propriedade Intelectual, que levou dois anos na Câmara e dorme por igual tempo no Senado. Nossa indústria farmacêutica e de química fina quer ser um perpétuo pingente tecnológico: viajar no trem do progresso sem pagar passagem. Há 50 anos o Brasil deixou de pagar patentes de produtos farmacêuticos e há 24 anos não paga patentes de processos. Imaginar-se-ia que, passando esse calote intelectual, teríamos vantagens competitivas, que ensejariam um rápido crescimento da indústria. Mas somos piratas preguiçosos. A participação da indústria nacional no mercado era de mais de 50% em 1945 e está hoje reduzida a 30%, apesar de várias multinacionais terem deixado o país, desencorajadas pelo controle de preços e pela falta de proteção de patentes. A pirataria farmacêutica trará o mesmo resultado da pirataria informática: cópias de qualidade inferior, a preços iguais ou mais caros do que os originais. Na feitura de uma lei de patentes biotecnológicas, as três figuras menos ouvidas são precisamente as mais importantes: o inventor que descobre, o investidor que traz capitais e o doente que sofre. O Brasil precisa mudar sua cultura, segundo a qual roubar um automóvel é um crime, mas roubar uma patente é patriotismo. Se quisermos receber investimentos, precisamos deixar de ser piratas preguiçosos e pinruz, que se revela na revolta contra as emendas constitucionais relativas à Previdência Social. O atual sistema tem três defeitos: sofre de uma dinâmica perversa dato presidencial Chirac, o presidente do Bundesbank e o premiê da Itália advogam o abandono de fundos estatais, baseados em tributos, em favor de pensões privadas, pagas por poupança pessoal. Dois modelos começam a ser debatidos: o modelo asiático, em que a função social do Estado é diminuta, recaindo a responsabilidade sobre as famílias e empresas; e o modelo chileno de privatização, que vincula diretamente o benefício à contribuição e permite o uso da poupança capitalizada para alavancagem de investimentos.
Os três vícios de comportamento a que me referi acima revelam:
desrespeito ao usuário;
desinteresse na geração imediata de empregos produtivos;
indiferença à falência do Tesouro.

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