São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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'Flexibilização' e concorrência

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

O Brasil possui uma peculiaridade que o distingue de outros países da América Latina. Tem operando em seu território, além de todas as filiais estrangeiras relevantes, três empresas estatais globais no sentido preciso da palavra (tamanho, integração continental e inserção internacional), geradoras de atividades complexas e de desenvolvimento tecnológico.
São elas a Vale do Rio Doce, em mineração e transporte; a Petrobrás, no complexo petroleiro, incluindo desde a pesquisa, extração e produção até o transporte e comercialização; e o Sistema Telebrás, com a Embratel, que é a cabeça moderna do sistema de telecomunicações.
As três empresas têm capacidade técnica e financeira para operar em escala nacional e internacional e assegurar um complexo sistema de planejamento estratégico, capaz de responder cabalmente às questões futuras da reestruturação interna e da inserção internacional competitiva.
Mais do que isso, o seu caráter de cabeça de complexos de dimensões continentais garante a possibilidade de manter a capacidade de competição interna e internacional de seus usuários, tanto do setor privado produtor de commodities (grandes consumidores de energia) quanto de empresas e bancos urbanos (grandes consumidores de dados e informações).
Os problemas de gestão que estas empresas vêm enfrentando foram e continuam sendo exacerbados por políticas contraditórias do governo central, que contribuem para a desprofissionalização de seus quadros de direção, mediante interferências políticas de natureza paroquial ou produto da luta interna de grupos de pressão.
Do ponto de vista do financiamento, as empresas têm capacidade de produzir lucros retidos e obter créditos de longo prazo, internos e externos, sempre que não sejam atreladas a aventuras fatídicas de financiamento do balanço de pagamentos, redução de tarifas e corte de programas de investimento a pretexto de controle da inflação.
É por tudo isso que não podemos estar de acordo com a sua ``flexibilização", tal como foi proposta pelo governo. Introduzir concorrentes mediante concessões ``ad-hoc" feitas pela União, vale dizer, pelos burocratas de turno a cada mudança de governo, só contribui para estilhaçar os complexos de atividades e os projetos de investimento de longo prazo.
Estamos, sim, a favor de sua flexibilidade operacional e transparência na gestão pública (ver proposta de Emenda Constitucional dos artigos 37 e 173, apresentada pelo PT), no que diz respeito à autorização para possíveis parcerias e obtenção de aportes de capital, que visem principalmente fortalecer estas empresas na sua atuação internacional.
Queremos preservar o controle acionário do Estado, que dá unidade e comando sobre o capital, mas remeter às próprias empresas, por seu staff profissional e técnico, a iniciativa de decisão sobre suas operações de produção, investimento e eventuais parcerias.
Queremos, sim, controlar publicamente, com a participação de representantes da sociedade civil, de grandes usuários, trabalhadores e funcionários dos governos central ou local, a gestão dos recursos e as prioridades sociais.
É ridículo imaginar que a frágil burocracia do Ministério de Minas e Energia ou um conjunto díspar de empresas transnacionais autônomas em concorrência predatória com as grandes estatais sejam capazes de tomar decisões corretas (tanto por um suposto poder político centralizado como pelo mercado) sobre sistemas desta complexidade e interesse social.
É incorreto cercear ou destruir empresas do porte das três grandes, que têm sido capazes de operar na prática projetos de caráter nacional e internacional com grande eficiência, apesar das severas restrições que lhes impõem o poder fiscal do governo central.
É uma falácia discutir a concorrência nestes tipos de setores como se tratasse de alfinetes ou mesmo de montadoras de automóveis. A introdução de mecanismos de concorrência em setores com essa complexidade exige uma análise muito mais cuidadosa do que a que nos é, infelizmente, oferecida pelo governo.
Na própria Inglaterra, tão decantada pelos ideólogos de plantão, a privatização nos setores citados foi precedida de estudos detalhados e debates exaustivos no Parlamento, que duraram mais de uma legislatura, e da montagem prévia de poderes regulatórios abrangentes.
Por outro lado, vender o patrimônio das grandes estatais para tapar buracos no Orçamento ou desmembrar atividades que constituem um todo organizado a pretexto de aumentar a concorrência e atrair capital estrangeiro é uma rematada loucura que não leva a parte alguma, como tão bem demonstram os casos da Argentina e do México.
Isto para não falar em outros aspectos que incidem na esfera macroeconômica, como, por exemplo, a explosão de preços e tarifas básicas e a fragilização da capacidade de gestão da política cambial (que resultaria da eventual transferência a empresas transnacionais das atividades de comercialização externa do petróleo e derivados, hoje sob o controle da Petrobrás).
A flexibilização da atuação das empresas estatais do setor de petróleo e telecomunicações e a possível reestruturação e reengenharia da Telebrás e do sistema energético não se confundem, pois, com os fáceis slogans de abertura ao capital estrangeiro e mesmo de privatizações realizadas aleatoriamente por grupos de bancos nacionais e fundos de pensão, privados ou estatais.
Nestes setores, o que se requer é planejamento e coordenação e não concorrência assimétrica com os grandes oligopólios internacionais.
Todos os capitais são benvindos, como sempre o foram, aliás, no Brasil. Mas no caso das grandes estatais e de grandes sistemas, somente como participação minoritária, como por sinal já ocorre.
Não por acaso são as ações da Vale, da Petrobrás e da Telebrás que movimentam o grosso das nossas Bolsas e que têm dado abundantes lucros aos especuladores nacionais e internacionais que nelas operam. Aliás, a ser utilizada a Bolsa de Valores, pode-se privatizar as grandes empresas estatais por quantias insignificantes.
A verdadeira questão da flexibilização diz respeito primeiro à gestão e capacidade de decisão estratégica das próprias empresas, até agora submetidas à luva de ferro de qualquer burocrata do Ministério da Fazenda ou do Planejamento, que se arroga o direito de levá-las à falência ou retalhá-las pelos vários grupos de interesse que pululam neste país.
Que coisa pretende o governo? Reduzir a Vale, a Petrobrás e a Embratel a uma situação financeira desesperada e a pressões políticas absurdas para depois retalhá-las e desestruturá-las? Os vagos projetos de privatização da Vale e o modo de tentar a ``flexibilização" dos monopólios de petróleo e telecomunicações caminham nessa direção. Tal orientação serviria supostamente para atrair recursos de qualquer maneira, o que não só é inadmissível, como de resultados duvidosos.

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