São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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A ASTÚCIA DA SERPENTE

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

No texto hebraico, a serpente não é, por definição, um ``ente diabólico"; ao contrário, mais do que qualquer outro animal, foi dotada de ``astúcia"
Mas Cassuto, nos seus comentários ao versículo II, 25, não deixa de referir, quanto à expressão ``E não se envergonhavam", que é preferível explicá-la assim: ``Uma vez que ainda não tinham conhecimento de bem ou mal, não tinham ainda aprendido que o desejo sexual pode ser dirigido para finalidades más, não tendo, portanto, razão para sentir vergonha de sua nudez".
Examinarei, agora, outros aspectos de minha ``trans-criação".
Na versão do ``tetragrama impronunciável" YHVH (II, 5), sigo a lição de Buber (``ER" ou ``ER, Gott"), acrescentando a ela o ``querê" (leitura substitutiva judaica) ``Ha-Shem" (O Nome).
Quanto aos rios do Éden (II, 11 e 13), faço acompanhar os seus nomes, onde cabível, dos respectivos atributos, extraídos do sentido etimológico respectivo.
Para corresponder ao jogo de palavras com que o texto bíblico salienta a criação do homem (`` 'adam") a partir do pó da terra (`` 'adamá"), II, 7, procurei compensá-lo com a correlação homem/húmus (uma associação já registrada em Quintiliano, abonada modernamente por Ernout e Meillet).
No ato da criação da mulher (II, 18), usei as expressões ``parceira" (`` 'ezar", ``aquela que ajuda") e a ``par dele" (``kneqdô", ``aquela que está defronte dele", ``que é digna dele e lhe corresponde"), para enfatizar a condição de ``companheira à altura de" conferida à mulher nesta ``Segunda História" (Rosenberg acertou neste ponto, empregando a palavra ``partner", que M. Balbuena verteu adequadamente por ``parceira").
Isto não significa endossar necessariamente a conclusão de Bloom de que, por ter sido criada depois do homem, e da matéria deste, a mulher teria sido uma versão ``aperfeiçoada" do ente humano, o que estaria a indicar a perspectiva feminina do texto ``javista". Robert Alter (``The Art of Biblical Narrative"), ao invés, considera que, nesse segundo relato, contraditório em relação ao primeiro, se espelha ``uma sociedade patriarcal, na qual os privilégios legais das mulheres e suas funções institucionais são mais restritos", e onde a ``convenção social nos convida a ver a mulher como subsidiária em relação ao homem".
Em II, 23, Adão, o ``Nomenclator", o que dá nomes por delegação divina (nesse sentido, como frisa Walter Benjamin, ``Pai dos homens e, antes do que Platão, pai da filosofia"), nomeia a mulher -``osso dos meus ossos e carne de minha carne". Em hebraico, há um jogo sonoro-semântico entre `` 'ish" (``homem") e `` 'ihsshá"/``mulher". Essa correlação, normal em inglês (``man/woman") ou em espanhol (``hombre/hembra"), só se efetuará em português se recorrermos a formas hoje inviáveis, obsoletas e mesmo pejorativas (soluções dos tradutores ditos ``clássicos": João Ferreira de Almeida, ``varão"/ ``varoa"; Antonio Pereira de Figueiredo, ``varão"/ ``virago"). Assim, optei por ``homem-hÚMUs" / ``MUlher", ressaltando, no plano gráfico-visual, com maiúsculas, as semelhanças relevantes. Em III, 20, a ``nomeação adâmica" se manifesta ainda uma vez, na imposição à mulher do nome Eva (``Havvá" em hebraico), apelativo que parece proceder de ``hayá" (viver). Donde, Vida-Eva.
``A serpente enlevou-me" (III-13). Diferentemente do que é sugerido nas representações cristãs, a serpente (``nahash"), termo que significa ``brilhante" e que pode ser associado a ``bronze" (``nehósheth"), não é, por definição, no texto hebraico, um ``ente diabólico". Ao contrário, mais do que qualquer outro animal, foi dotada de ``astúcia", de ``ardilosidade" (atributos de Odisseu, herói homérico, ``polìmetis", ``polìtropos", ``multiastucioso", ``multiardiloso"). No episódio do Éden, a serpente aparenta um conhecimento da ``árvore do bem e do mal" que vai muito além da ``inocência" paradisíaca do casal humano (fato que, para Bloom, constitui a maior ironia do texto ``javista").
O verbo que descreve o ato de persuasão praticado pela serpente em relação à mulher é ``nasá' " ou ``nashá", com o sentido de ``elevar para um plano mais alto" (``lift up"), ``seduzir", ``iludir/decepcionar". Buber o traduz por ``verlockte mich" (``seduziu-me", aliciou-me"). Com o verbo ``enlevar", que significa ``encantar", ``arrebatar", ``causar arroubamento ou êxtase", e que procede do latim ``levare" (``erguer", ``elevar"), penso ter colhido o matiz semântico do original. Rosenberg, desatento a tudo isso, traz simplesmente ``gave me" (``deu-me").
``Com o suor o aflar de tuas narinas" (III, 19). Costuma-se traduzir por ``suor do teu rosto" (assim, J.F. de Almeida e A.P. Figueiredo). A palavra hebraica que se verte por ``rosto" é `` 'af", que significa primordialmente ``nariz". Daí as traduções de Harper (``Introductory Hebrew") por ``sweat of thy nostrils" e de Chouraqui (``Entête") por ``sueur de tes narines". São decalques literais, que soam bizarros. Preferi uma fórmula que juntasse a ``sudação" ao ``ofegar de cansaço", recobrando assim o aspecto pictural do hebraico, sem arrevesar o português.
Em III, 22, expressa-se a razão pela qual Deus pune o ser humano com o desterro do paraíso. É que estariam, homem e mulher, a um passo de elevar-se à condição de ``deuses" (III, 5). Bastaria que eles, já possuidores do ``conhecimento", lançassem a mão ao fruto da ``árvore-da-vida" e, comendo-o, ganhassem a imortalidade, passando a viver ``para o eterno-sempre" (``le'olam"). Usei da expressão ``no impulso de sua mão", para fazê-la ecoar em ``expulsou" (III, 23). Sigo mais uma vez a lição aguda de Cassuto, que aponta uma correlação entre ``yisheláh" (de ``shaláh", ``lançar") e ``yeshalee'hêhu" (forma do mesmo verbo que significa ``pôr para fora", ``expulsar", literalmente, ``expulsou-o").
No intuito de assegurar-se de que a pena de exílio não seria infringida, o Deus patriarcal e antropomorfo da ``Segunda História da Criação" (para Bloom uma curiosa mistura de ``pai maternal e juiz vingativo") põe como vigias da ``árvore-da-vida" seus ``querubins" (``mal'ekhê habbalá", ``anjos da destruição", segundo a glosa de Rashi), figuras associadas no imaginário hebraico aos ``touros-leões-alados" babilônicos, de face humana. Mune-os, ademais, de uma arma formidável, a ``espada de flamas multigirante". Este último termo, em hebraico, diz-se ``mithehappékhet" e procede do verbo ``hafakh", numa forma participial-frequentativa, que se verte literalmente por ``girando em torno de si para todos os lados".

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