São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Todos os detalhes levam a Roma

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sujeitos que gastam mais de R$ 1.500,00 para se fantasiarem de legionários romanos podem ser chamados de várias coisas, como excêntricos ou doidos varridos.
Seja qual for a opinião sobre eles, os grupos devotados ao que chamam de "história viva já há tempos são levados a sério pelas escolas no Reino Unido. E agora até mesmo pesquisadores estão se interessando por esses grupos.
Os historiadores e arqueólogos britânicos descobriram que esses grupos não apenas estabelecem uma ponte entre suas pesquisas e a sociedade, mas também podem colaborar com seus próprios trabalhos acadêmicos.
Há grupos de praticantes da "história viva para qualquer período da história britânica. Entre os mais populares estão aqueles que buscam recriar a vida cotidiana na época em que a a maior das ilhas britânicas era uma província romana.
"Nós agora estamos sendo levados a sério pela comunidade de arqueólogos, disse à Folha o "legionário David Richardson, secretário do grupo "Legio Secunda Augusta, que recria o ambiente de uma das legiões romanas da era imperial.
A legião era a unidade militar básica da máquina de guerra romana. Seu tamanho equivale ao que hoje se costuma chamar "regimento. No início da era imperial -que coincidiu, grosso modo, com a era cristã- uma legião tinha cerca de 4.800 homens.
A legião era uma unidade relativamente auto-suficiente. Era empregada como guarnição de uma região e também servia como a unidade básica de manobra do exército romano.
O grupo de Richardson se chama "Legio Secunda Augusta porque a 2ª legião combateu no sul do país, de onde vem a maior parte dos membros do grupo. Essa unidade desembarcou no Reino Unido com a invasão do imperador Cláudio em 43 d.C., comandada pelo futuro imperador Vespasiano. Trinta anos depois, a legião estabeleceu sua base principal em Isca Silurum, atualmente Caerleon, no sul do país de Gales.
A reconstituição que o grupo faz de armas, objetos e vestimentas pretende ser a mais fiel possível. Por isso seus membros são ávidos consumidores da literatura técnica sobre a antiguidade romana. Com isso, foram se aproximando dos pesquisadores, e surgiram parcerias em certas pesquisas.
A moda recente da "história viva também coincidiu com uma tendência de certos arqueólogos de produzir réplicas para com isso tentar descobrir mais dados sobre a "cultura material.
Poucos arqueólogos têm interesse -e, mais importante, a verba- para construir uma catapulta da era romana. Já os grupos de "história viva têm o interesse e o dinheiro, faltando a eles os dados históricos.
A "Legio Secunda Augusta já construiu um modelo de catapulta capaz de atirar dardos com 8 pés (cerca de 2,5 metros) de comprimento (veja ilustração). O grupo está agora dando os retoques finais em mais uma peça de artilharia, capaz de atirar pedras do tamanho de um punho.
A mania de perfeição faz com que essas peças empreguem o mesmo tipo de matéria-prima que se sabe -por relatos históricos- ter sido empregada pelos romanos. A torsão das catapultas não é feita com plástico, e sim com material de origem animal, como crina de cavalo.
O resultado dessas parcerias são réplicas e testes que ajudam a responder dúvidas variadas, mesmo que aparentemente insignificantes. Por exemplo, um historiador universitário fez elaborados testes para descobrir qual o melhor tipo de ponta de flecha romana. Algumas delas eram capazes de penetrar couraças de escamas de metal; outras resvalavam. A diferença pode ter significado a vitória ou a derrota em uma batalha das muitas em que os romanos se envolveram, criando o império que forjou a civilização ocidental.
Mais comumente a vitória vinha da própria organização militar romana, a mais perfeita da história militar até a idade contemporânea. Essa organização explicava o motivo pelo qual exércitos romanos bem menores eram capazes de derrotar forças de "bárbaros muito superiores numericamente.
O legião era subdividida em unidades menores, do mesmo modo como acontece hoje, em que regimentos são divididos em batalhões, companhias e pelotões. Uma legião de 4.800 homens tinha 10 coortes de 480 legionários cada. A coorte tinha três manípulas; cada manípula tinha duas centúrias de 80 homens (apesar do nome, o "centurião não era necessariamente responsável por cem homens).
O pessoal da "Legio Secunda Augusta está longe de ser uma legião, mas já inclui um número suficiente para mostrar como era uma pequena unidade, o "contubernium. A palavra contubérnio, em português, quer dizer tanto convivência ou concubinato como "tenda de campanha. Essa última definição vem diretamente do latim: o "contubernium era um grupo de oito legionários que dividiam a mesma tenda -viviam, marchavam e lutavam juntos.
O "contubernium da legião britânica costuma treinar as manobras básicas dos legionários. Aquela mania de marchar que ainda faz parte de todos os exércitos do planeta tem sua origem remota nas manobras necessárias nos campos de batalha da antiguidade (hoje, sua função básica é apenas disciplinar).
Os soldados romanos lutavam lado a lado em fileiras compactas. Todos tinham uma arma de mão, uma pequena espada chamada "gladium (gládio). Não havia lugar para canhotos radicais na legião. Todos tinham de usar a espada na mão direita e segurar o escudo na esquerda. O escudo de um legionário ajudava a defender também o seu colega à sua esquerda. O tamanho do escudo romano também servia como uma proteção contra dardos e flechas do inimigo.
Antes do combate corpo a corpo, o legionário podia usar dardos leves, os "pila ("pilum, no singular). Os dardos eram fabricados de modo a não poderem ser facilmente reutilizados pelo inimigo. A ponta era mais fina que o resto do dardo, e dobrava ou arrebentava caso atingisse um alvo (o corpo do inimigo, ou seu escudo).
Apesar de ter apenas a décima parte de uma centúria, a "Legio Secunda tem também um oficial, o centurião, vivido pelo astrônomo H. J. P. Arnold. O grupo também inclui profissionais de outras áreas, como um artista plástico ou um engenheiro.
Como o objetivo do grupo é representar várias facetas da vida romana, ele inclui também uma seção feminina. Trata-se do grupo "Domina. "Além de vestirem as roupas e jóias elegantes de dois milênios atrás, o grupo pesquisa e apresenta como era o tratamento médico, com remédios de ervas, as práticas religiosas, a preparação de comida, fiação de roupa, ou como os cosméticos eram usados, diz Richardson. As mulheres acompanham os legionários em suas apresentações em escolas.
É quase desnecessário dizer que as crianças adoram receber a visita desses legionários em vez de só ter aulas expositivas. O grupo já fez shows em várias partes do Reino Unido e mesmo na Holanda. Como não há mais imperadores romanos, certa vez ele serviu de guarda de honra ao equivalente mais próximo -o príncipe e provável futuro rei britânico Charles.

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