São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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A ASTÚCIA DA SERPENTE

HAROLDO DE CAMPOS

Ocorre que, em hebraico (XI, 4), onde Rosenberg traduz: ``Without a name we're unbound, scattered over the face of the earth" (``Sem um nome estamos desvinculados, espalhados sobre a face da terra"), não aparece a forma unbound, mas, tão-somente, a expressão pen-nafutz (``caso contrário nos dispersaremos"). O mesmo se diga da frase ``the city and tower the sons of man were bound to build" (``a cidade e a torre à cuja construção os filhos do homem estavam vinculados"; ``bind to" no sentido de ``comprometer-se com"). Em hebraico, XI, 5, lê-se, apenas: asher banú (``que estão construindo"). Também nos versículos XI, 6 e 8, onde Rosenberg escreve, respectivamente: ``...and it leads up until no boundary exists to what they touch" (``...e isso leva até onde não existam limites ao que eles queiram tocar") e ``the city there came unbound" (``a cidade ali ficou desvinculada/ sem amarras"); em ambas essas passagens, o texto hebraico diz, simplesmente: ``ve'aattá lo'-yibbátser mehém kol'asher yazmú" (``e agora não se poderá impedi-los de fazer tudo o que queiram") e ``vayyheddelú liynoth hayir" (``e eles pararam de construir a cidade").
Assim, o ``sutil jogo de palavras de J" sobre ``bound/ unbound/ boundaries", na expressão entusiasmada de Bloom, só existe na versão substitutiva de Rosenberg, embora o texto do ``Gênese", em outros pontos, apresente-se perpassado por efeitos relevantes de som e sentido (a paronomásia generalizada da poética jakobsoniana), o que leva outro estudioso, J.P. Fokkelman, a considerá-lo ``uma ilustração clássica" da tese central (a operação da ``função poética") de Roman Jakobson.
Mas Bloom não fica só no terreno da avaliação estilística, estética. Como teórico da ``desleitura" (``misreading"), ironicamente enredado em sua própria teoria, continua, sempre imaginoso e estimulante, a derivar conclusões da matriz lúdica que põe em relevo, ainda que dúbia, equivocada, quando conferida com o texto hebraico de partida. Assim, o conceito de ``boundary" é arrolado entre os ``grandes tropos do exílio", no penúltimo capítulo de seu livro: ``A Bênção: Exílios, Limites, Ciúmes", onde se lê: ``O Exílio definitivo é a confusão, a dispersão até mesmo dos limites (``boundaries"), a perda que não tem qualquer nome" (tradução de M. Balbuena). A propósito, ``sem um nome" também não ocorre em XI, 4...
Passo agora a deter-me nos capítulos II e III do ``Gênese" e em minha ``trans-criação", que se publica em complemento a este estudo (leia na pág. 5-5). A chave de abóbada desses dois capítulos, no plano da linguagem, é uma tripla paronomásia (apontada com precisão por U. Cassuto), entre as palavras hebraicas: `` 'arom" (plural `` 'arummim"), versículo II, 25 (``desnudos"), referindo-se ao homem e à mulher em situações de inocência edênica; `` 'arum", versículo III, 1 (``astuto"), reportando-se à serpente como ``o mais astuto entre os animais"; e, finalmente, `` 'arur" (com ``álef" e não com `` 'ayin"), ``maldita", dizendo respeito à serpente, amaldiçoada por Deus em III, 14.
Procurei resolver, de modo compensativo, esse efeito de arquitextura fônica e semântica com os recursos do português. Desdobrei, assim, a paronomásia original: a) numa rima toante ``desnUdOs"/``astUtO", reforçada pela intercalação de consoantes dentais (d/t); b) num jogo etimológico entre ``malícia" (sinônimo de ``astúcia") e ``maldita". Rosenberg, a meu ver, não soluciona adequadamente esse problema-chave. Estabelece um jogo entre ``smoother-tongued" (``dotada da língua mais lisa", metáfora lexicalizada em inglês para ``insinuante", ``lisonjeira") e ``smooth-skinned" (``dotada de pele lisa"), querendo com isso transpor a correlação entre ``desnudos/astuto" (III, 7 a 1).
Para o terceiro elo da paronomásia (reconhecido, inclusive, numa nota à recente ``Tradução Ecumênica" publicada pelas Edições Loyola: ``A serpente, o mais astucioso dos animais /'arum, passa a ser o mais miserável deles, 'arur"), introduz, mais uma vez, o seu verbo favorito, ``to bind": ``bond apart" e ``bound to the ground" (``desvinculada" ou ``posta à parte" e ``presa vinculada ao solo"), onde o texto hebraico reza: `` 'arur attá" (``serás maldita") e `` 'al-gehonekhá thelêkh" (``sobre teu ventre irás"). Referindo-se ao ventre (``gahon") da serpente, Rosenberg usa -mais uma vez!- o adjetivo ``smooth" (``liso"), que não figura no original. Parece-me que o sema de ``lisura" não caracteriza (nem conota) necessariamente ``nudez" e que a locução ``posta à parte" (ou seja ``des-vinculada dos rebanhos"), para traduzir `` 'arur" (``maldita"), não se correlaciona com os demais compostos rosenberguianos à base de ``smooth" (``-tongued", "-skinned). Somente a especulação filológica poderia extrair, recorrendo ao verbo assírio ``arâru", essa acepção de matiz ``vinculativo", que falta ao termo hebraico. Alter fala numa confusão com o verbo `` 'asar" (escrito com o ``s" dito ``samekh"), este sim traduzível por ``to bind".
Ora, é da maior importância, para a exegese do original, a conservação, quanto possível, dessa unidade tripartida, fônica e semântica. A exposição da ``nudez" (`` 'arom") do casal primevo (``nudez" não mais inocente, como em II, 25, mas agora culposa, acarretando vergonha e medo, III, 11), decorre, por um lado, da tomada de consciência do par humano, por obra de serpente; por outro, provoca a redução da fascinadora ``astuciosa-maliciosa" (`` 'arum") à condição de ``maldita" (`` 'arur"), rebaixando-a da posição privilegiada que antes tinha na escala animal. Bloom, em outro texto (a introdução de 1982 a ``On the Bible", de M. Buber), havia escrito: ``O que a serpente ensina deve ser chamado consciência ou um senso de nudez"; o que a mulher teria ganho, além da triste cognição da morte, seria a ``previamente não existente consciência da sexualidade, através do seu signo de desnudez".
No ``Livro de J", essa interpretação de matiz freudiano é atenuada. Bloom passa a entender que a equação do conhecimento do bem e do mal ao ``conhecimento ou consciência da sexualidade" é uma ``desleitura normativa", reducionista. A ``vergonha", no caso, não teria ``conotações sexuais", decorrendo antes de algo mais amplo, o conhecimento da ``liberdade e dos limites da liberdade". Se essa generalização não deixa de ser aceitável, a desvalorização da interpretação na linha da sexualidade parece ser uma consequência da tradução amortecedora de Rosenberg.
Octavio Paz, na conclusão de seu livro sobre amor e erotismo, ``A Dupla Chama" (Siciliano, 1993, tradução da W. Dupont), encontra justamente em Adão e Eva ``um casal que abarca todos os casais", e vê no seu ``pecado" e na sua história ``um contínuo corpo-a-corpo com o tempo sem corpo" a ser revivido e reinventado por todo ``casal de amantes".
Antes de Bloom, Buber sustentou a irrelevância da leitura voltada para o ``desejo sexual", rejeitando também aquela fundada numa ``cognição generalizada", para optar, na vertente de sua filosofia dialógica, por uma ``consciência adequada dos opostos que inerem a todo ser humano".

Continua à pág. 5-6

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