São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Mitterrand revela preocupação com herança

DA REDAÇÃO

Uma das maiores preocupações do presidente da França, François Mitterrand, de 78 anos, é com a marca que deixará na história.
Foi um dos motivos da publicação de "Memória a Duas Vozes, coletânea de entrevistas que concedeu a Elie Wiesel, sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz, montado pela Alemanha nazista, e vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 1986.
"Sinto agora a necessidade de dizer, em algumas palavras contidas durante muito tempo, o que me importa, explica na apresentação do livro o presidente Mitterrand, que sofre de câncer na próstata em estágio avançado.
Lançado em abril na França pela editora Odile Jacob, o livro saltou rapidamente ao topo da lista dos mais vendidos.

Elie Wiesel - Quando o informaram da doença, ao entrar na sala de cirurgia, o sr. rezou?
François Mitterrand - Não sou mais corajoso do que nenhum outro. Eu sabia que era grave, que podia ser mortal, mas no fundo eu não acreditava nisso.
No momento de ser operado, eu estava em estado de serenidade passiva: eu me fiz objeto.
Chega um momento, como, por exemplo, nos acidentes, em que nos olhamos como se não fôssemos nós mesmos os atores principais do drama que se desenrola.
Wiesel - Vi o sr. no dia 10 de setembro de 1992, na véspera de sua primeira cirurgia. Quando penso nisso, em retrospectiva, fico espantado: o senhor ostentava um ar tão calmo, solto!
Mitterrand - Eu considerava que, mesmo que aquilo fosse importante para mim, pessoalmente, o que estava acontecendo comigo era uma coisa banal, anódina.
É verdade que não me agradava. Não gosto de sofrer; desvio a cabeça quando recebo uma injeção, ou quando tiram uma amostra de sangue. Não pratico o heroísmo todo dia ao me levantar!
Mas, quando não há outro jeito, eu suporto. Sou um paciente resignado. A dor que se imagina é insuportável; aquela que se sofre é quase sempre suportável.
Wiesel - Estamos na virada do século. Como o sr. vê o futuro dessa história à qual contribuiu?
Mitterrand - As ciências e a tecnologia vão se desenvolver, semeando a discórdia, obrigando os homens a conceber uma sociedade de produção diferente.
O cultural assumirá um lugar cada vez mais importante. A ausência de fé provocará a multiplicação das seitas. Muitos aguardarão um taumaturgo, como nas grandes tragédias da Idade Média.
Espero que não haja um grande transbordamento político, como aconteceu na Alemanha em 1933.
Wiesel - O sr. gostaria de ainda estar na Terra no ano 2020 para ver o que acontece? É o presente que o preocupa, ou o futuro imediato?
Mitterrand - Não. Assim como Willy Brandt (chanceler socialista da Alemanha) mandou inscrever sobre seu túmulo essa bela frase, como epitáfio, eu diria: "Fiz o que pude.

Continua na pág. 1-24

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