São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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'Lamento não ter feito tudo o que deveria'

Presidente fala da Segunda Guerra Mundial e de suas relações com pessoas que colaboraram com o nazismo
Eu não teria contas a prestar a pessoas que se erigem em juízes sem saber por quê
Não preciso ter arrependimento ou remorso nenhum. Porque deveria ter?
Sendo por natureza insatisfeito, penso que fiquei aquém de minhas ambições
Elie Wiesel - Sr. presidente, muitas pessoas sabem de nossa amizade. Após as revelações contidas em vários livros publicados no decorrer do outono de 1994, elas me assediaram com perguntas sobre suas relações com René Bousquet (francês que colaborou com o regime francês pró-nazista de Vichy durante a Segunda Guerra Mundial). De fato, essas revelações provocaram mais do que incerteza -provocaram angústia.
O senhor esteve em contato com René Bousquet durante a guerra, após sua chegada em Vichy? Se esteve, qual era a natureza de suas relações com ele? Elas obedeciam aos imperativos de sua ação a serviço da Resistência?
É essa razão pela qual o sr. manteve laços com vários dos colaboradores mais próximos de René Bousquet, dos quais alguns, dez anos após a guerra, se tornaram seus colaboradores, em seu próprio gabinete no Ministério do Interior?
François Mitterrand - Respondo porque é o sr. quem está perguntando. De outro modo eu não teria contas a prestar a essas pessoas que se erigem em juízes sem saber bem por quê.
Não conheci René Bousquet durante a guerra. Por outro lado, em 1942, 1943, 1944 estive em contato com um funcionário, um subprefeito, Jean-Paul Martin, que não era um de seus colaboradores, como o senhor falou, mas colaborador do diretor geral da polícia, que era, ele próprio, um dos subordinados de Bousquet.
Era uma época extraordinária, complexa e terrivelmente perigosa. Era preciso dispor de documentos falsos que parecessem verdadeiros, ou, melhor ainda, de salvo-condutos oficiais para passar pelas barreiras, e de amigos certeiros para poder escapar de situações difíceis.
Esses amigos me ajudaram em minha ação a serviço da Resistência, como a outras pessoas. Vichy não era um monolito, a Resistência interna tampouco.
Entre os dois, em função do tempo, as fronteiras eram às vezes porosas. O combate às forças de ocupação se revestia de formas diversas.
Foi assim que Jean-Paul Martin várias vezes nos avisou de blitzes, de buscas previstas para as horas ou para os dias seguintes. Ele salvou vidas. Serei sempre grato a ele por isso.
Se René Bousquet estava a par disso? Não sei. Em todo o caso, não o encontrei.
Eu sabia que René Bousquet havia estado no governo de Vichy. Sabia que ele tinha sido prefeito sob a 3ª República.
Sabia que, após deixar seu cargo em Vichy, havia sido deportado pelos alemães. Os fatos que eu sabia terminavam ali!
O sr. acredita que um ministro, mesmo que seja do Interior, dez anos depois, peça fichas de polícia completas sobre todos seus visitantes?
Não é assim que as coisas acontecem. Essa é uma visão mental. Além disso, não tenha a ingenuidade de pensar que os serviços competentes não sofrem, em certos casos, a tentação de expurgar as fichas em questão.
Wiesel - O sr. declarou que, ao retornar do cativeiro, não estava a par nem da existência nem do conteúdo das leis antijudaicas, acrescentando -o que magoou muitos de seus amigos, muitos de nossos amigos- que, além disso, elas só diziam respeito aos judeus de origem estrangeira. O sr. poderia explicar exatamente?
Com o passar do tempo o sr. deve necessariamente ter tomado conhecimento dessa legislação, nem que fosse apenas pelo fato de cruzar com portadores da estrela amarela. Quais foram suas reações, nesse momento?
Mitterrand - O sr. precisa compreender que, enquanto estávamos presos, não tínhamos meios de acompanhar as diferentes etapas da legislação do regime de Vichy. Tínhamos outras preocupações. Quanto a mim, eu tinha uma preocupação que me mobilizava por inteiro: fugir.
E, quando consegui voltar à França, não me pus a perscrutar o ``Diário Oficial".
Depois vi as estrelas amarelas. Tomei conhecimento do estatuto dos judeus. Isso contribuiu para me distanciar de um sistema que aceitava tal crime. E eu combati esse sistema.
Fui à Inglaterra, à Argélia, retornei à França ocupada em fevereiro de 1944 e fiz parte de um pequeno grupo de homens encarregados, em nome de De Gaulle, de tomar o poder após a libertação de Paris.
Após a libertação dos campos, a revelação do horror indizível aprofundou meu compromisso com a defesa e a sobrevivência de Israel, meu engajamento a seu lado após o início da 4ª República. O senhor conhece minha ação a favor do direito de Israel à existência e à paz. Não direi mais do que isso.
Wiesel - Acho que o olhar que o sr. lança hoje sobre seu passado é pelo menos tão importante quanto seu próprio passado.
Em nosso último encontro, o sr. me confidenciou que achava que, talvez, durante esse período, lhe tivesse faltado um pouco de vigilância. O sr. estava exprimindo um arrependimento, talvez mesmo um remorso?
Mitterrand - No terreno em que o senhor se coloca, o caso Bousquet, não preciso ter qualquer arrependimento ou remorso. Nenhum. Por que haveria de ter? Esse julgamento que me está sendo feito me deixa indignado.
Procuro enxergar minha vida com objetividade, lançar sobre ela o olhar do homem que sou hoje, tendo realizado o que realizei, sabendo o que sei, estando aqui onde estou. Ou seja, perto do meu fim.
Direi em primeiro lugar que, ao longo dos anos, fui transpondo as restrições de meu meio, de minha educação, de certos dos preconceitos dessa educação.
Prefiro ter seguido esse caminho, libertando-me progressivamente do ambiente conservador que era o meu, para ir de encontro aos ideais da esquerda, em lugar do caminho inverso seguido por muitos outros, notadamente nos anos dos quais estamos falando, os anos do pré-guerra e da guerra.
Esse caminho não foi livre de obstáculos e dificuldades, mas eu o segui e sinto um certo orgulho disso.
Wiesel - Como o senhor foi ferido na guerra?
Mitterrand - Um obus com balas, uma granada, explodiu acima de um pequeno grupo que eu formava com meu aspirante, um jovem de minha idade (professor de filosofia nos EUA que foi adido cultural da França em Washington), com quem eu mantinha laços de amizade.
Fui atingido duas vezes. Uma bala atravessou meu corpo abaixo da omoplata. Eu não percebi o que acontecera na hora. Achei que uma bala tinha me atingido em plena garganta.
Tive um choque na garganta. Eu disse a meu amigo, que tinha sido atingido no joelho, que eu havia sido atingido na garganta. Era idiotice, pois se isso tivesse acontecido eu não poderia falar.
Então ele rasgou minha camisa -o que me fez passar mais de dois meses sem camisa- e me disse: "Não há nada, você não tem nada.
Depois, olhando melhor, ele viu um filete de sangue que descia por minhas costas, de um pequeno buraco. Era um estilhaço que atravessara a pleura e viera se alojar no ombro.
Havia outra, mas o ferimento era superficial. Apesar disso, passei um ano com o braço enrijecido. Alguns companheiros me carregaram, ferido, até uma estradinha onde encontrei uma maca. Percorri quilômetros até Esne-en-Argonne, onde havia uma enfermaria num porão.
Dezenas de pessoas esperavam ali para serem atendidas, com feridas mais graves que eu. No meio daqueles gemidos, cirurgiões trabalhavam sobre mesas.
Fui procurar em outro lugar. Percorri cinco hospitais sem encontrar um médico. Acabei por me acostumar com meu ferimento. Eu não estava morto! Ninguém cuidou de mim, nunca.
Os alemães entraram em Paris, eu ainda estava em Verdun (norte da França). Não nos dávamos conta de que éramos virtuais prisioneiros, pois os Exércitos alemães haviam mudado de direção e cercado a Lorena (nordeste).
Depois houve o Armistício. Naquele momento, eu estava numa cidadezinha de Bruyère, na região de Vosges (nordeste). Os alemães chegaram; eu estava no meu leito de hospital, ao lado de um senegalês.
Wiesel - Em 1943 o senhor sabia o que significava Auschwitz?
Mitterrand - Essa palavra me era desconhecida. Sabíamos de Dachau, não sei por quê, e de Buchenwald.
Eu sabia que havia campos, mas não tinha conhecimento da destruição sistemática. Eu não visualizava a realidade de Auschwitz.
Wiesel - Mas havia informações sobre o gueto de Varsóvia.
Mitterrand - Varsóvia não era Auschwitz. Esse grau de sofrimento me era desconhecido. Vocês dispunham de testemunhos que não chegavam a mim.
Wiesel - Em minhas pesquisas, descobri que os grandes jornais americanos, o "New York Times, o "Washington Post, já falavam de Auschwitz. As pessoas estavam a par do que acontecia.
Roosevelt (presidente dos EUA) sabia, mas não disse nada. Um dia tive um encontro com o Jimmy Carter (ex-presidente dos EUA).
Ele me disse: "Tenho um presente especial para o sr. Pedi ao chefe da CIA (agência de informação) que encontrasse para mim, nos arquivos, tudo que sabíamos sobre os lugares onde o sr. esteve.
Foram encontradas as fotos tiradas pelos pilotos após o bombardeio de uma fábrica perto de Auschwitz. Roosevelt as havia estudado. Era realmente claro.
Perguntei a ele: "Como é possível que essas fotos não tenham sido utilizadas? Ele me respondeu: "Não sei. Então perguntei a ele: "Se o sr. estivesse em meu lugar, o que pensaria de Roosevelt agora?
Carter pareceu inquieto. Ele examinava as fotos e não dizia nada. Estaria disposto a defender seu predecessor? Não o fez. Contentou-se em dizer mais tarde: "Quem sabe o que ele pode ter pensado.
Mitterrand - Acho que não. É verdade que Roosevelt demorou a levar os EUA à guerra. Mas ele precisava convencer a opinião pública.
Wiesel - Ele era indiferente ao destino dos judeus.
Mitterrand - O sr. acredita!
Wiesel - Ele teve medo que o acusassem de ser demasiado amigo dos judeus. Não fui o primeiro a desconfiar disso e a escrevê-lo.
Ele queria, sobretudo, não ser atacado pelos adversários. Existem verdades que um chefe de Estado não deve dizer?
Mitterrand - Enquanto uma operação difícil está sendo realizada, o sigilo pode ser necessário. Mas não além desse tempo.
Wiesel - Se houvesse uma tragédia e o sr. tivesse conhecimento dela, o sr. falaria?
Mitterrand - Sim. Fiz isso em relação aos palestinos. Era um tema essencial. O governo guardava silêncio por temor de chocar-se com a Síria, de quem dependia em parte o destino de nosso reféns. E cada um poupava o governo de Israel.
Wiesel - O sr. acredita que a guerra seja o pior dos ultrajes à consciência humana? Eu sim.
Mitterrand - É o pior ultraje coletivo. Mas as violências individuais são igualmente graves. A guerra, em si, não é mais cruel do que o estupro ou o assassinato de uma criança.
Wiesel - Por quê?
Mitterrand - A guerra é cega. O que a torna assustadora é seu aspecto, as grandes massas que morrem juntas, um povo inteiro, uma região, uma etnia.
Wiesel - Mil crianças mutiladas, isso me parece pior do que uma criança morta. Varsóvia é a mesma coisa. Mas falemos da guerra nuclear. O que na guerra nuclear, na perspectiva dela, infunde medo ao sr.?
Mitterrand - A destruição de uma parte da humanidade.
Wiesel - O sr. acredita que isso é possível?
Mitterrand - Sou favorável ao armamento nuclear da França, porque acredito que isso torna impossível uma agressão contra ela.
Wiesel - O sr. se preparou para assumir esse poder?
Mitterrand - Sim. Fui eleito ao cabo de 35 anos de vida política. Eu havia vivido a experiência do governo durante sete anos, no decorrer dos quais aprendi a manejar os mecanismos e estudei o conteúdo das decisões a serem tomadas.
Em seguida, durante 24 anos, fiz parte da oposição onde, pelo contrário, pude refletir sobre o que faria se acedesse ao poder, que homens escolheria para me ajudar em minha ação. Wiesel - Todos esses anos na oposição o marcaram?
Mitterrand - Toma-se o gosto pela oposição. Eu poderia ter permanecido nela sem sofrer. Era tão pouco provável que o rumo das coisas se invertesse que eu não tinha necessidade de me resignar. Era assim. Mas eu teria gostado de ser uma voz que se fizesse ouvir independentemente do êxito.
Wiesel - Seus fracassos políticos o deprimiram?
Mitterrand - Não, nunca. Meu campo estava desfeito. Voltar a dotá-lo de força e vigor até chegar à vitória, era uma aposta incerta. Os comentaristas podiam afirmar que eu perdia sempre, isso não significava nada.
Léon Blum (socialista francês do período entre as guerras mundiais) levou 15 anos, entre 1921 e 1935, para levar a Frente Popular à vitória. Precisei de dez anos, entre a criação do Partido Socialista, em 1971, até minha eleição, em 1981, para chegar ao êxito. Entre as duas datas houve uma sucessão de aparentes fracassos. Na realidade, a progressão foi constante.
Wiesel - O que fica de um ser humano são seus atos, e também suas palavras. Creio que a história julgará seus atos, mas o sr. mesmo, como os julga?
Mitterrand - Sendo por natureza insatisfeito, penso que fiquei muito aquém de minhas ambições e dou razão às críticas que me foram feitas, mesmo que meus adversários errem ao condenar meus atos em bloco, definitivamente.
Minha opinião é mais mitigada, é claro. Me parece injusto denegrir tudo. Espero, em todo caso, que, se alguém se interessar por isso algum dia, possa encontrar em minhas palavras e meus escritos, em meus atos, alimento para sua fé no destino da humanidade, no destino da França, na construção da Europa, e que alguns de meus princípios ideais e morais sejam compartilhados.
Wiesel - O que faz o sr. sentir mais orgulho? É a ação, o fato de ter feito as multidões vibrarem, suscitado entusiasmos, ou o fato de poder dizer: "Fracassei nesse ponto mas continuei sendo o homem que eu era?
Mitterrand - Sou mais sensível a algumas palavras escritas, a atos legislativos: a supressão da pena de morte, a nova cara da França após a descentralização, a defesa em certas grandes circunstâncias dos povos oprimidos do Terceiro Mundo; e também às tomadas de posições decisivas para a construção da Europa.
Considero que isso faz parte de uma prestação de contas da qual eu poderia sentir orgulho, se tivesse propensão a isso.
Wiesel - Em outras palavras, o sr. trabalha para reunir as pessoas.
Mitterrand - Sim, tenho essa tentação.
Wiesel - Para que o estrangeiro não se sinta estrangeiro, para que a pessoa indefesa seja defendida no interior de uma comunidade.
Mitterrand - Sou por gosto bastante internacionalista. Mas, se a coletividade internacional à qual pertenço se encontra em perigo, reajo como patriota.
Wiesel - Há alguma coisa que o sr. lamente?
Mitterrand - Sim, lamento não ter feito tudo que deveria ter feito.
Por exemplo, contra o desemprego. Sei que a doença não vem da França, mas a França a tem. Às vezes subestimei o peso das sociedades, a lentidão de suas engrenagens, o peso de seus hábitos e costumes. Não se transforma a sociedade através de uma decisão legislativa.
Mas muitas coisas mudaram decisivamente na França desde 1981. No plano da justiça, das jurisdições de exceção, do código penal; no tocante às mulheres, direitos no casamento, familiares, financeiros, à proteção das crianças, à luta contra a segregação... Orgulho-me considerando que contribuí para isso.
Wiesel - O sr. poderia ter vivido uma vida diferente da que viveu?
Mitterrand - Creio que sim. Poderia ter dedicado minha vida à reflexão, viver no campo, em companhia das árvores, dos animais e de alguns entes queridos.
Talvez seja um sonho bucólico, mas eu sentia em mim a capacidade para isso. As aventuras do espírito são tão agitadas quanto as aventuras da ação, e eu não tenho sempre necessidade de mudanças para viver bem.
Mas, sem dúvida, o incentivo da ação foi mais forte do que o da reflexão, pois acabei por me lançar na política.

Tradução de Clara Allain

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