São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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O vento da história

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Leitor não identificado geograficamente, mas traído etariamente (deve ter mais de 50 anos) enviou-me xerox de uma crônica que escrevi em 1964 a propósito do conceito de esquerda ou direita. Era resposta a outro leitor que me havia cobrado uma definição: naquele tempo, quem não era claramente de uma ou outra banda, simplesmente não existia. Até hoje continuo não existindo.
No xerox, há trecho assinalado com tinta vermelha. Fazia referência ao pessoal da esquerda que aproveitava o vento da história para ser funcionário da Petrobrás ou adido cultural em Paris, Londres, Roma etc.
O movimento militar daquele ano espalhou o vento da história, que começou a soprar para outro lado. Na época, só mesmo os calhordas mais ostensivos tiveram cara e coragem para colocarem suas velas a favor dos novos ventos que sopravam.
A maioria aguentou o rojão. Mesmo sem verba do Itamaraty, muita gente foi parar em Paris, Londres, Santiago, Havana, houve alguém que acabou na Bulgária -e engordou de tanto ingerir fermento búlgaro.
A lição foi aprendida. O vento da história continuou soprando, e agora ninguém dá um passo sem antes botar um pouco de cuspe na ponta do dedo e ficar sabendo para que lado o vento está soprando.
Grande parte da esquerda ficou na boca de espera, aguardando pretexto razoável para aproveitar os novos ventos. Uma turma havia desconfiado que o comunismo já acabara, organicamente, em 1956, com o relatório Kruchev. Outros esperaram a Queda do Muro. Ser funcionário da Petrobrás tornou-se meta desprezível. Para quem não tinha vela a expor ao vento, a coisa ficou bastante confusa.
Navegador solitário, vou onde posso ir com meu próprio remo. Vejo passar enormes veleiros numa e outra direção, com suas velas bojudas, infladas pelo sopro da história. Como aquele personagem de Gorki, eu me aborreço em voz alta e me divirto em silêncio. Pelo menos, há mais de 30 anos.

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