São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 1995
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'Mulheres Altas' desafia culto à juventude

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não sei se ``Três Mulheres Altas", de Edward Albee, é de fato uma boa peça, ou se é um espetáculo cuidadosamente programado para nos deixar, quando acaba, a impressão de termos visto uma boa peça. Se é isto, qual o truque?
Talvez esteja no fato de que o autor soube graduar com muito cuidado as emoções das personagens. Elas só se revelam, só se enunciam plenamente, nos 15 ou 20 minutos finais da peça. É num clímax de oratória, num grande momento discursivo, que as luzes acendem, que conclusões e mensagens se explicitam, e, então, é claro, aplaudimos.
O primeiro ato é cheio de tiradas inteligentes, usa de todos os recursos para prender a atenção do público, mas organiza um confronto afinal bastante ralo entre as personagens. Há as picuinhas entre uma velha senhora doente (Beatriz Segall) e sua dama de companhia (Natália Thimberg). Uma jovem advogada (Marisa Orth) precisa que a velha assine uns papéis e choca-se com a linguagem politicamente incorreta de sua cliente.
Alguma coisa gira em falso. Beatriz Segall refere-se de modo preconceituoso a negros e judeus; a jovem e liberal advogada americana bufa de raiva e parece nunca ter visto uma pessoa velha antes. Talvez nos Estados Unidos o diálogo se mostre especialmente tenso. No Brasil, onde a vigilância do ``politicamente correto" não é tão forte, tudo se dilui, e o primeiro ato termina sem que algo de intenso, de dramático, pareça ter sido preparado; não há nada que esteja prestes a eclodir, e ficamos numa espécie de vazio de expectativas.
Tinha de ser assim mesmo, pois o segundo ato não é, na verdade, a continuação ou o desenvolvimento do primeiro; usa apenas as informações de que dispõe o espectador para pôr em cena um novo confronto.
Agora, as três atrizes representam uma só personagem, em três momentos da vida -juventude, maturidade e velhice. É ocasião para brilhantes monólogos, para reflexões pessimistas, para súbitas exaltações da vida. Mas, se a peça ganha em intensidade, surge um novo problema.
Marisa Orth é uma jovem feliz, deslumbrada com bailes, roupas, namorados. É submetida, então, a um ``efeito Orloff" existencial, e em dose dupla. Natália Thimberg é Marisa 30 anos depois, e Beatriz Segall é Natália Thimberg no fim da vida.
O diálogo torna-se muito difícil de sustentar. Pois é claro que a mocinha não aceita aquilo que as outras duas lhe dizem. O papel de Marisa Orth é ingrato -é de quem se aferra à própria juventude e à custa vai-se convencendo de que a vida lhe trará desgostos. ``Não, não pode ser". A resposta: ``Vai ser assim, você verá".
Sem dúvida, Beatriz Segall será então a porta-voz de uma enorme sabedoria de vida; o tom discursivo de suas intervenções como que abafa a possibilidade de diálogo. As razões de cada uma das mulheres em cena têm de permanecer estanques; da impermeabilidade entre as três fases da vida só podem surgir reflexões mais e mais amargas, monólogos de cunho sobretudo ensaístico.
É graças a isso que a peça adquire seu maior impacto, e quando Beatriz Segall lança ao público sua peroração extrema, de um ponto em que o desencanto e a amargura já se transformam em indiferença, e esta numa forma final e ambígua de felicidade, bom, aí já fomos vencidos pela peça de Albee e aplaudimos a lição recebida.
Não há, a rigor, o que discutir na visão de mundo apresentada em ``Três Mulheres Altas": a realidade das coisas, o fato de que se envelhece e morre, o fato também de que vivemos numa quase que permanente inconsciência disso, eis a banalidade mais perturbadora, o óbvio mais estranho que nos é dado a experimentar.
A peça de Albee expõe isso com clareza quase didática e sem o subterfúgio de enredos, alegorias e fabulações. Talvez seja precisamente essa clareza, ou essa quase crueza da peça, o que mereça ser explicado.
É que se vive, atualmente, no culto cotidiano da juventude, da beleza, da saúde, da felicidade instantânea. Provavelmente nenhuma outra sociedade rejeita, com tanta ênfase como a que se vê nos países industrializados, qualquer consideração pessimista sobre a condição humana.
O desfrute imediato dos bens de consumo, a felicidade prometida pela propaganda, os próprios avanços da medicina tendem a criar um clima de puerilidade febril, de hiperatividade, de euforia forçada nas pessoas; uma recusa ao trágico conforma, para bem ou para mal, a mentalidade dominante. Talvez seja a Aids o fator mais significativo a desafiar, nos últimos tempos, o estado de espírito fundamentalmente antitrágico das sociedades desenvolvidas.
Mas, de modo geral, tendemos a nos comportar como a personagem jovem de Albee, resistindo ao que as duas outras têm a dizer. Não é por acaso, então, que ``Três Mulheres Altas" trata o assunto de forma tão explicativa, tão transparente. Seu esquematismo, com o que tem de apelativo até, é o preço do impacto que quer -e consegue- produzir.

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