São Paulo, quinta-feira, 11 de maio de 1995
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Comece devagar e depois relaxe um pouco

DAVID DREW ZINGG
EM NOVA ORLEANS

B em, o New Orleans Jazz and Heritage Festival -ou Jazzfest para você, Joãozinho- terminou.
Foi um evento e tanto. Cerca de 4.000 músicos subiram às alturas, tocando todas as variações do jazz possíveis de imaginar -desde Lady Charlotte e sua Traditional Jazz Band até Sonny Rollins tocando bebop em seu mágico saxofone de ouro.
Para tio Dave é fácil dizer quem foi o "Best of the Fest".
O vencedor tranquilo foi Dr. John, o "excursionista da noite".
Por meus cálculos, Dr. John tem 54 anos. Ele é a personificação humana da lenda de Nova Orleans. Ele já fez praticamente tudo que um músico pode fazer em ``The Big Easy" (Nova Orleans) e ainda saiu vivo.
O nome verdadeiro desse gênio do piano é Malcolm Rebennack, e ele é uma figura enorme, lembrando um urso, cujos dedos gorduchos já exploraram tudo que esta cidade jazzística tem a oferecer em termos de estilos musicais.
Por isso mesmo Dr. John se transformou numa figura cult comparável ao homem com quem tocou uma vez, Frank Zappa. (``Eu não entendia aquele cara", disse Dr. John certa vez. ``Frank era doido demais para mim". Ser doido demais para Dr. John é ser muito doido mesmo.)
O bom Doutor mergulha fundo em linguagens musicais como a jambalaya creole, o conceitualismo cajun, o ragtime, blues, funk, jazz, barrelhouse e boogie-woogie. Em suma, é uma espécie de museu musical vivo da cidade em que nasceu.
Os apelidos de trabalho dados em Nova Orleans são wagnerianos em sua escala. O mentor de Dr. John foi o grande pianista negro já falecido Professor Longhair (Professor Cabelos Compridos). Rebannack se tornou um dos poucos músicos brancos a frequentar o cenário negro das gravações em Nova Orleans.
Mick Jagger e Eric Clapton participaram como convidados em seu álbum ``The Sun Moon and Herbs". A importantíssima revista ``Down Beat", aqui da Gringolândia, diz que Dr. John é ``um mestre sério da tradição de Nova Orleans".
Quando fui assistir a Dr. John aqui, ele subiu ao palco rebolando o bumbum como uma sambista da Mangueira. Seus movimentos pareciam muito mais leves do que da última vez. No passado ele sempre parecia estar meio distante, e por um bom motivo.
Rebannack apresentou uma música chamada ``I'm a Runner in the Jungle". No meio dela cantou um rap comprido dizendo ``passei três quartos de minha vida andando na contramão numa rua de mão única... Descobri que estava no lugar errado na hora errada".
Não está mais. Ele se referia aos 35 anos que passou viciado no ``cavalo" -a heroína. Agora, finalmente, Dr. John apeou e não precisa mais de transporte equino para ir de um lugar a outro.
No ano passado o músico de voz rouca narrou o caos de sua vida pessoal numa autobiografia superinteressante, ``Under a Hoodoo Moon" (Sob uma Lua Hoodoo). O ``Hoodoo" do título se refere à versão Nova Orleans do vodu.
A hora da verdade chegou para Dr. John certa noite assustadora quando se viu na ala cardiológica de um hospital do Arizona, com fios saindo de várias partes do corpo. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi seguir a enfermeira até o lugar onde eram guardados os narcóticos.
Enquanto desconectava os fios, alguma coisa aconteceu: ele disse a si mesmo que estava ficando um pouco velho demais para aquilo tudo e iniciou a longa e dolorosa viagem de volta, passando pelas dores da abstenção.
A nova leveza é perceptível em sua música. O Dr. John curou Dr. John.

Chiquita Banana
Para qualquer pessoa que conheceu a velha Nova Orleans, viajar num bonde da linha St. Charles é como fazer uma viagem numa máquina do tempo.
Este correspondente guarda uma série de truques de sobrevivência na manga de sua camisa Brooks Brothers.
Uma das muitas coisas curiosas que tio Dave aprendeu a fazer o trazia a Nova Orleans com frequência no início da década de 50.
Ele estava aprendendo a plantar bananas numa enorme fazenda de bananas em La Lima, Honduras.
Devo confessar, Joãozinho, que eu era um daqueles construtores do império capitalista gringo que trabalhavam para ``El Pulpo", a infame United Fruit Company.
Cultivar bananas é um trabalho tão emocionante e estressante quanto ter um emprego no qual você é pago, por exemplo, para assistir a grama crescer.
Para evitar um derretimento mental total, eu era autorizado a deixar minha fazenda de bananas a cada seis meses e viajar até Nova Orleans, para descansar e me recuperar. A United Fruit Company seguia o modelo do Exército norte-americano nos mais mínimos detalhes, até mesmo na preocupação de zelar pelo bem-estar psíquico de seus funcionários.
Há 45 anos a lânguida cidade sulina que chamavam de ``The Big Easy" podia realmente ser considerada ``easy", ou ``tranquila". Certa vez um homem sábio me disse que ``em Nova Orleans, meu filho, você tem que aprender a começar devagar e depois relaxar um pouco".
Eu costumava descer do navio-geladeira reluzentemente branco que levava a mim e às bananas que eu cultivara com tanto labor até Nova Orleans e tomar o bonde para chegar ao prédio do escritório da United Fruit Company, em St. Charles Street.
``El Pulpo" pertencia a um grupo seleto de integrantes das altas castas de Boston. Certo dia, enquanto eles estavam distraídos com outra coisa, a empresa foi roubada bem debaixo de seus aristocráticos narizes.
Pior: o cavalheiro responsável por esse artístico ato de apropriação indébita era um imigrante. Seu nome era Samuel Zemurray e, mais constrangedor ainda, era um judeu russo.
Sam Zemurray era bastante versado no que pode ser visto como furto de alto nível. Certa vez ele resolveu uma disputa complicada sobre terras bananeiras de maneira enérgica: simplesmente invadiu a área em questão, usando um par de metralhadoras de segunda mão, e a declarou propriedade sua. O fato de que a terra que invadira fazia parte de uma nação centro-americana soberana, Honduras, não parecia ter maior importância.
Criei o hábito de visitar Zemurray quando estive em Nova Orleans. Ele era considerado imoral e inconveniente por pessoas mais respeitáveis que viviam em Boston e Washington, D.C.
Para um jovem misto de jornalista e produtor de bananas, de folga em Nova Orleans, Zemurray era uma figura saída de um livro de ficção barata e rica fonte de sabedoria prática, tirada do mundo cão.
O conselho mais sábio que eu jamais iria ouvir sobre brigas políticas internas me foi dado depois que fiz a peregrinação até meu herói pirata, pelo bonde da linha St. Charles.
``Não dá pra confiar nesses animais sebosos", disse Sam, referindo-se a alguns dos meus colegas plantadores de bananas. ``Eles sorriem demais. São capazes de sorrir pra você e mijar na tua perna ao mesmo tempo. São capazes de mijar na tua perna até te derreter inteirinho".
Realmente o bonde da linha St. Charles é como uma viagem ao passado numa máquina do tempo.

Tradução de Clara Allain

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