São Paulo, sexta-feira, 12 de maio de 1995
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Limitações ao direito de greve

AFFONSO CAMARGO

O artigo 9º da Constituição de 1988 conferiu o direito de greve aos trabalhadores, enquanto para os servidores públicos, segundo o art. 37, inciso VII, esse direito seria exercido com restrições, nos limites fixados em lei complementar.
Os constituintes de 1988, através do parágrafo 1º do artigo 9º, deram a entender, implicitamente, que o direito de greve dos trabalhadores deveria respeitar os direitos dos demais cidadãos, no que concerne ao recebimento dos serviços ou atividades essenciais e ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Isso foi feito através de lei ordinária (lei nº 7.783 de 28/6/89).
O paradoxo existente entre o caput do art. 9º e o seu parágrafo 1º consiste em que o direito de greve dos trabalhadores se tornou superlativo em relação ao direito dos usuários dos serviços ou atividades essenciais e ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Para melhor avaliarmos o alcance dessa questão, apresentamos um caso prático. Um cidadão acidentado é levado a um hospital e necessita de uma cirurgia que vai salvar-lhe a vida. Os médicos do hospital estão em greve, exercendo seu legítimo direito constitucional. O cidadão acidentado, por falta ou demora no atendimento, vem a falecer, embora tivesse direito ao atendimento de emergência.
O atendimento de uma necessidade inadiável foi-lhe negado e não se pode imputar responsabilidade ao médico, porque esse exercia um direito constitucional. Na verdade, o direito de greve superpôs-se a um direito natural (o direito à vida).
Para tentar elucidar esse conflito de direitos, cabe primeiramente definir o que se entende por atividade essencial e o que vem a ser necessidade inadiável.
Atividade essencial pode ser entendida como aquela cuja paralisação causa turbulência social ou graves prejuízos à comunidade. Ou seja, o conflito entre patrões e empregados gera efeitos sobre os direitos e o patrimônio de terceiros, estranhos ao conflito.
Nesse caso, citamos os fornecimentos de energia elétrica e de água potável, o recolhimento do lixo, o transporte coletivo, os serviços funerários e os do corpo de bombeiros, o atendimento médico-hospitalar de urgência e o ensino básico.
Necessidade inadiável da comunidade pode ser definida como a necessidade que, não atendida oportunamente, resulta em dano ou prejuízo irreparável aos cidadãos. Tal é o caso do atendimento médico-hospitalar de urgência, o serviço prestado pelos bombeiros, o fornecimento de energia elétrica e combustível e os transportes coletivos.
Note-se que todas as atividades que suprem as necessidades inadiáveis da comunidade são também atividades essenciais, mas nem todas essas podem ser enquadradas como provedoras das necessidades inadiáveis.
Uma aula de alfabetização é essencial para a comunidade, mas não é inadiável. Se não for dada hoje, poderá ser recuperada no dia seguinte. Todavia, estancar uma hemorragia não é uma atividade que possa ser adiada para o dia seguinte.
Aspecto relevante da questão é que a grande maioria, se não a totalidade, das atividades essenciais são serviços públicos, exercidos diretamente pelo Estado ou por empresas mediante concessão.
Se os serviços são prestados pelo Estado, os agentes são servidores públicos. Se o serviço é concedido, os agentes são trabalhadores. No primeiro caso, o direito de greve será regulado pelo art. 37, inciso VII, da Constituição. No outro caso, pelo art. 9º.
O exercício do direito de greve constitui instrumento de coação no relacionamento entre patrões e empregados, supondo-se serem estes últimos a parte mais fraca, no caso de empresas privadas. Tratando-se de necessidades inadiáveis, esta suposição não é mais verdadeira, pois o constrangimento a ser aplicado ao empregador se transfere aos membros da comunidade.
Ademais, no caso do serviço público não ficam caracterizadas perfeitamente as duas partes em litígio, pelo menos no que concerne ao lado do patrão. O patrão do servidor público é o Estado. Na mesa de negociações o Estado é representado por um dirigente público, também servidor, que não tem poderes amplos e irrestritos para decidir sobre aumentos da despesa pública.
De fato, o salário dos servidores é despesa pública para a realização da qual são destinadas dotações orçamentárias. Ora, o orçamento é anualmente discutido e aprovado pelos representantes do povo, os parlamentares.
Os demais poderes, como o Executivo e o Judiciário, não podem, sem prévia autorização legislativa, alterar a despesa prevista, a não ser para menor. Por conseguinte, não há condições de aplicar-se ao servidor público, em sua plenitude, o postulado direito de greve nos moldes em que foi concedido ao trabalhador pela Magna Carta.
Por isso somos de opinião que o direito de greve deveria ser vedado aos trabalhadores dos serviços considerados inadiáveis, no sentido exposto neste texto. Quanto aos serviços essenciais, dever-se-ia limitar o direito de greve exclusivamente à hipótese de não-cumprimento de cláusulas negociadas anteriormente.
As greves de caráter político e de advertência deveriam ser severamente coibidas, aplicando-se multas aos sindicatos e penalidades aos dirigentes responsáveis.

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