São Paulo, sábado, 13 de maio de 1995
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"La Próxima Víctima"

JOSUÉ MACHADO

"Fria e calculista", ``Se aparecer na sua frente, entregue a Deus", ``Se faz passar por detetive". Essas são algumas das frases publicadas em jornais para definir sinteticamente algumas das personagens da novela ``A Próxima Vítima", da TV Globo. Elas apareceram em páginas inteiras de jornais sob aparentes retratos falados das criaturas que povoam o novelaço e faziam parte do programa de divulgação da obra folhetinal.
O leitor Geraldo Beira Simões, do Rio, pede opinião sobre tais frases, que considera suspeitas, claudicantes, e até sugere boas e corretas opções.
A expressão ``fria e calculista" é um magnífico exemplar de clichê do mais fino extrato. Essas duas palavras estão casadas há dezenas de anos - um milagre de bom gosto e de estabilidade matrimonial. O novelista da ``Rádio Cuba Libre", F. Fernandez, Fernandez & Fernandez, a utilizou com grande sucesso pela primeira vez em 1925 em Havana, na novela ``La Próxima Víctima". Tentava com grande esforço imitar o sotaque dos cubanos oriundos de Barcelona. Escorregou na tentativa e caiu de quatro. O fato é que mesmo assim a expressão pegou e foi exportada para o Brasil, acostumado a importar boas coisas. Ainda utilizamos o ilustre par, que completou bodas de diamante. Faz sentido.
``Se aparecer na sua frente, entregue a Deus" é outra das belas frases alinhadas. Musical, refere-se a uma donzela de família quase boa que papa o tio nas muitas horas vadias. Entregue a Deus o quê? Óbvio, como diz o leitor, que faltou o ``se" do ``entregue-se", no sentido de ``submeter-se", ``pôr-se sob proteção". É o que fazemos quando o governo ameaça aumentar impostos e ressuscitar o ótimo imposto sobre cheques. Por que não também sobre o gostoso ar que respiramos?
De volta ao anúncio, seu escriba criador gosta de provocações, por isso sentou-se em cima do ``se" do verbo ``entregar-se", pronominal no caso, e o absorveu. Quem entrega - entrega algo a alguém, assim como quem dá dá alguma coisa a alguém, sabemos todos.
``Se faz passar por detetive" contém forma pronominal que Mário de Andrade propunha para marcar uma das características da língua brasileira, que queria mais claramente separada da portuguesa. No papo da esquina até que se começam frases com esse tipo de colocação pronominal (próclise), em que o pronome pessoal oblíquo (me, te, se etc) puxa o trem da oração. Mas não pegou literarimente e, na linguagem escrita, soa como um cotovelaço do Júnior Baiano na orelha do Rivaldo ou uma traquinagem do Edmundo. Ou, ainda, como um ``telefone", aquelas duas taponas que aplicam simultaneamente nos ouvidos de suspeitos em algumas delegacias de costumes e de bons modos. A respeito de tal colocação pronominal, hão de pensar, como o leitor, que o escriba responsável fugiu da escola ou era jardineiro e vigia na Casa da Dinda dos bons tempos, que ainda não são maus porque a coisa flui serena por lá, apesar do Jorge Bandeira. Por que não?
O leitor tem dúvida sobre mais uma frase, a que caracteriza o ``Zé da Bolacha", ``Elemento perigoso": ``Qualquer informação sobre o seu paradeiro, dê uma pista." Só se pode imaginar que o gracioso redator de tão bem-traçadas estava tentando imitar a linguagem dos impolutos policiais que mantêm a lei e a ordem com tanto zelo e êxito, sem jamais misturar-se com a bandidagem. ``Elemento perigoso" é típico deles (cacófato). As outras palavrinhas, também. Fora a elegância, obviamente propositada, por ser impossível que uma pessoa levemente alfabetizada escreva assim, não há erro gramatical nem necessidade de ponto final depois de ``paradeiro". São duas orações, sim, mas uma subordinada a outra, como o governo é subordinado aos mais altos interesses populares, prova o Fundo Social de Emergência. O período pode ser desdobrado assim: ``Dê uma pista, (se tiver) qualquer informação sobre o seu paradeiro."
Ao fim e ao cabo, como se escrevia antigamente, parece claro, portanto, que o indigitado elemento autor do anúncio é delegado competente ou se faz passar por um. Proprietário de suspeitíssimo senso de humor, resolveu brincar com os possíveis interessados na novelal peça literária, mistura magnífica de Agatha Christie com Nelson Rodrigues, Roberto Carlos, Xuxa, Paulo Coelho e Adoniran Barbosa. Coisa finíssima.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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