São Paulo, sábado, 13 de maio de 1995
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Revendo a Bahia sem adjetivos de Caymmi

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Não sei de nenhum outro poeta nosso que use tão poucos adjetivos quanto Dorival Caymmi. Vejam esse cântico de Itapoã: ``Coqueiro de Itapoã/ coqueiro!/ Areia de Itapoã/ areia!/ Morena de Itapoã/ morena!/ Saudade de Itapoã/ me deixa!/ O vento que faz cantigas/ nas folhas do alto do coqueiral/ O vento que ondula as águas!/ Eu nunca tive saudade igual".
Trinta e nove palavras e um adjetivo. Quando Caymmi qualifica alguma coisa é com adjetivos duros, parte do real, ``o Abaeté tem uma lagoa escura, arrodeada de areia branca". Dois tons que estão misturados com a lagoa e a areia, pois não existe lagoa mais escura que a do Abaeté nem areia branca assim, feito sal.
Eu não ia à Bahia há alguns anos e por isso, ao voltar agora de uma breve visita, me sinto ainda um pouco alterado. Mas é fato que anda tudo muito bonito por lá. O mistério do Abaeté permanece, mas as lavadeiras que ali se curvavam ao Sol antigamente para esfregar lençóis têm agora sua casa de trabalho, com torneira e tanque, ali mesmo, à beira da mesma lagoa, ouvindo o mesmo batucajé longínquo. Só perderam a miséria.
Quanto ao bairro, para mim novíssimo, do Iguatemi, fiquei perplexo. Trata-se de uma pujante Barra da Tijuca plantada a dois passos das praias de Caymmi, com seus prédios arrogantes, altos, que não olham para os lados, nem para baixo. Os próprios coqueiros do Iguatemi, magros e curvos, parecem entediados, em comparação com seus semelhantes de ali pertinho, na Pituba ou na Armação, aprumadinhos na areia.
Graças aos céus, o fascinante na Bahia não é a prova de que ali se pode fazer a Barra da Tijuca ou, como no bairro salvadorense da Vitória, a avenida Paulista. É o passado sempre presente, é o culto de antigos orgulhos.
No milagre de inventividade que é o Mercado Modelo -refinados prateiros esculpindo em latão orixás que não podem deixar de ser milagrosos- me detive diante de uma tapeçaria de onça de olhos bordados num limo vivo e úmido. Perguntei ao barraqueiro se não tinha tapete igual, porém menor, menos caro. A resposta foi: ``Não. Só recebi dois desses. O outro guardei pra mim".
Notícias mais íntimas, às vezes tristes, tive nas conversas calmas com velhos amigos, como Iolanda e Waldir Pires, e prezados amigos recentes, como Cláudio Veiga, o presidente da Academia de Letras da Bahia, de quem eu era convidado. Mas o que naquela terra acaba sempre por predominar, mesmo nos contatos pessoais, é sempre a Bahia. Envolvente. Amada e ubalda.
O galho e o serrote
Sem choro, sem vela, sem nem sequer uma fitinha amarela, está sendo paulatinamente derrubado aqui no Rio o primeiro prédio da avenida Niemeyer. O prédio foi o primeiro hotel de encontros amorosos do Rio de Janeiro. É do ano de 1926 e foi celebrado numa marchinha carnavalesca que falava no beijo que começava em Realengo, esquentava no Flamengo e acabava no Leblon. Entre os lençóis de uma das camas do Hotel Leblon.
O velho edifício em que eu moro é o último da rua Aperana, pela qual se sobe para o morro dos Dois Irmãos. Tenho uma janela voltada para o antigo refúgio de casais sem teto, que, depois de se chamar hotel, passou a ser o Motel Leblon. Dessa janela vejo agora o dia inteiro a velha casa -que ultimamente adotara o ar severo de mulher da vida que virou beata- sendo demolida por operários a golpes de marreta.
Derrubam primeiro a parede externa de cada andar, atacando em seguida as paredes divisórias. Nestas últimas se põem em pé e tratam de ir esfarelando e derrubando com cuidado, a golpes de marreta, a magra parede que sustenta eles próprios no espaço. Tal como nas caricaturas em que vemos numa árvore, com ar distraído, alguém que serra o galho em que se encontra. Duvido que seja trabalho aprovado em qualquer código de obras existentes.
A edificação atual, da Construtora Wrobel, tem história longa nos anais da prefeitura carioca. Em fins de 1983 a mesma firma tentou dar um golpe, que quase funcionou. Encaminhou ao então prefeito Marcello Alencar, atual governador do Estado do Rio, seu projeto de construção e uma solicitação bem ``naive" para uma troca de nome do logradouro do futuro prédio.
Como este ocupará a confluência da avenida Niemeyer com a Visconde de Albuquerque, a proposta era que o prédio pertencesse apenas à Visconde de Albuquerque, cujo gabarito permite a construção de altos prédios, enquanto na Niemeyer o limite é de cinco andares. O ingênuo requerimento só esquecia que o endereço do Hotel Leblon era avenida Niemeyer, número 2.
O prefeito Alencar chegou a aprovar a tramóia, mas, logo que alertado, cancelou a aprovação, aliás menos de 24 horas depois de concedê-la. E não houve volta atrás. Só agora, 11 anos depois, começa a protelada construção que -como alegava a Wrobel em 1984- se destinava entre outras coisas a corrigir o penhasco que ``enfeia a praia". Ao que me informam, o novo projeto está dentro dos cinco andares permitidos na avenida Niemeyer.
As lindas mangueiras do terreno foram logo derrubadas, a machado. Agora os obreiros procuram derrubar-se a si mesmos, na marreta.
O empate
Por que o Rio não convoca, para trazer paz aos seus morros, a Polícia do Paraná? Ela demonstrou, no episódio do sequestro de Marechal Cândido Rondon, muito mais competência do que as Forças Armadas na empatada batalha do Itararé carioca. Ou será que a diferença é que no Paraná os bandidos não contam com armas de uso exclusivo das Forças Armadas?

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