São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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O direito de matar

JANIO DE FREITAS

A cada artigo contestando a ferocidade oficial como solução para a criminalidade no Rio, ou em qualquer lugar, é invariável a reação numerosa: ``venha morar no Rio, venha ser assaltado e vamos ver se a sua opinião não muda". Isso mesmo passou-se mais uma vez há poucos dias, a propósito do direito dado às polícias fluminenses de matar sem risco de punição (``Não quero que meus policiais sejam punidos" -Marcello Alencar, sobre o assassinato de 13 marginais que se ofereciam à rendição).
Você, leitor, já foi assaltado? Já teve o cano de um 38 engatilhado na sua testa? Já teve roubado um carro novo? Já teve a casa invadida e roubada? Já foi imobilizado por armas e levado como um sequestrado? Tem um filho que já foi assaltado quatro vezes? Se já passou por tudo isso, não se gabe: seu currículo apenas empata com o meu, que não está todo aí. Vê-se que não preciso mudar para o Rio -é evidente que moro nele e, mais, vizinho de uma favela. E, para quem duvide, tenho testemunhas de que, apesar dessa condição topográfica, continuo vivo. Por isso mesmo, contrário à concessão do direito de vida e morte a quem quer que seja.
Nenhum poder é maior do que o poder de vida e morte. Este é, no entanto, o poder agora posto explicitamente nas mãos dos policiais do Rio por Marcello Alencar, com apoio também explícito do ministro do Exército, de meios de comunicação cariocas e até de um alto prelado, além dos menos notórios. Aos policiais de mentalidade tão bem conhecida, é dado o poder que a recusa constitucional à pena de morte nega aos próprios magistrados.
Mas em 24 horas vinha o primeiro efeito do novo poder. A descrição da cena é inesquecível: supostos marginais em fuga invadem um casebre, uma das três crianças moradoras, aterrorizada, esconde-se sob a cama e os policiais, pressentindo aí uma presença, atiram e matam. A julgar pelo seu silêncio a respeito, aos que celebraram o poder policial de matar não importou que fosse apenas um assustado menino de dez anos. Importante foi omitir providências e cobranças que pudessem resultar em embaraços (em punição, nunca) para o matador.
Admitamos, não mais do que pelo tempo de um parágrafo, que a violência policial a granel seja capaz de resolver o problema da criminalidade urbana. Quantos milhares, nesse caso, terão que ser mortos? Porque é incalculavelmente gigantesco o contingente dos que vivem entre a pequena e a grande marginalidade criminosa. A morte de uns intimida os demais? Engano. Todos agem embalados pelo tóxico, que reduz ou anula o instinto de conservação e dá a audácia para o ato sem limites. Isso já foi dito por muitos deles, naquelas entrevistas em que se dizem conscientes de que a morte os apanhará cedo, porque estão para o que der e vier. É a maneira, a que foram levados, de sentir-se gente e heróicos.
O problema da criminalidade urbana é todo ele muito complicado. E sua complexidade está envolta em equívocos de muitos, hipocrisias de outros e vigarices que unem bandidagem e ``autoridades". Disputas a bala por pontos de drogas fazem o escândalo da criminalidade. Atribuir o problema do Rio a essas disputas é, porém, um dos tais equívocos que só dificultam mais. As disputas são localizadas, bem delimitadas mesmo, e ocasionais, hoje aqui, amanhã ali. A insegurança generalizada, e pior, provém de outra generalização: o assalto, o roubo, cujo desfecho nunca se sabe se será a perda apenas material.
No Rio de hoje, só os insensatos não têm algum medo ao estacionar ou desestacionar o carro. Parar em sinal de trânsito é um perigo. Andar a pé por qualquer rua, qualquer mesmo, é risco permanente. Motocicleta com dois homens? Não deixe se aproximar. Os ônibus dividem-se, conforme as linhas, entre os que têm assaltos todos os dias e os que têm quase todos os dias. Os donos silenciam sobre os assaltos a restaurantes, hotéis, lojas, mas os casos são corriqueiros. É um grave equívoco, portanto, atribuir o problema da criminalidade urbana só aos traficantes. A insegurança vem, sobretudo, dos assaltantes e ladrões.
É equívoco de uns e hipocrisia de outros. Para estes, que estão instalados no poder público, é menos embaraçoso atribuir tudo a bandos de traficantes infiltrados nas favelas. Assim encobrem sua absoluta omissão, por descaso mesmo, nas medidas preventivas, de ordem socioeconômica, e repressivas, de ordem policial, contra o tipo de criminalidade que mais produz a insegurança e o medo generalizado.
As favelas são celeiros desta criminalidade por culpa direta e única dos governadores e prefeitos que as deixam crescer e multiplicar-se incessante e infinitamente, para não perder votos e até ganhá-los (como prefeito, Marcello Alencar tornou-se autor de várias favelas, inclusive em pontos nobres). E as abandonam todas na degradação, porque as ciclovias e outras fresquices é que fazem o ``marketing" nos meios de comunicação sempre voltados para as boas classes sociais.
Os equívocos de muitos e a hipocrisia de outros alimentam o conto do vigário que é o policiamento contra assaltos e roubos. No centro do Rio, como de São Paulo e demais grandes cidades, encontram-se nas ruas pontos de compra de jóias, relógios, canetas caras, óculos. Nos subúrbios e na periferia do Grande Rio vêem-se placas propondo ``compra de ouro, colares, pulseiras, alianças, anéis". Em plena rua e nessas bibocas estão os receptadores em ação, comprando o produto dos trombadinhas e assaltantes. Os ferros-velhos de carros novos são a mesma coisa. E por que não há ação contra eles? Quando, de raro em raro, acontece uma, o comum é policiais e PMs por trás do negócio. O que explica a proliferação, tão mais rentável do que o trabalho regular, da delinquência urbana.
A violência é o oposto da autoridade. E também da inteligência. A concessão do direito de matar nega autoridade e inteligência -os dois únicos atributos que podem resolver o problema da criminalidade no Rio e em qualquer lugar.

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