São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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Falta planejamento e visão de futuro

LUCIANO COUTINHO

Em outra oportunidade sublinhei, nesta coluna, a ausência, no Brasil, de entidades independentes de regulação dos serviços básicos de infra-estrutura com capacidade para assegurar o interesse público, a racionalidade de longo prazo e os direitos dos usuários.
Esta deficiência é particularmente grave no momento em que, aparentemente, a maioria do Congresso Nacional se inclina em favor da derrogação dos monopólios estatais, sem que exista clareza a respeito da nova configuração que se deseja implantar em cada caso.
É particularmente inquietante a falta de visão de futuro por parte do governo. Quando indagadas a respeito das características dos novos modelos, as mais altas autoridades exibem imperdoável superficialidade, falta de clareza ou recorrem a simplismos ideológicos. Esta falta de planejamento e de visão é tão grave quanto a ausência de tradição em matéria de regulação do interesse público.
Com exceção dos EUA (ruptura do sistema BELL na telefonia) e da Inglaterra (com as reformas Thatcher), nos países desenvolvidos da OCDE os processos de abertura dos monopólios naturais à participação privada vêm ocorrendo de forma gradativa, com objetivos nítidos, após intensas discussões. Optou-se, na maioria dos casos, por processos de transição organizada e nunca por rupturas improvisadas.
A falta de visão estratégica é tanto mais grave no caso brasileiro pela pressão das circunstâncias e de poderosos interesses constituídos. A pressão circunstancial deriva da fragilidade fiscal e financeira do Estado, que induz as autoridades a encarar a venda dos ativos públicos como prioridade de ``caixa", para cobrir déficits orçamentários ou para abater o estoque da dívida.
Trata-se de uma perigosa irracionalidade, a de liquidar ativos produtivos para cobrir um desequilíbrio corrente de custeio ou para correr atrás de uma dívida pública que é inchada diariamente, com inusitada velocidade, pelos juros elevadíssimos mantidos pelo próprio governo.
Outra pressão vem da necessidade de atrair capitais externos para financiar o déficit nas transações correntes com o exterior -faça-se, então, uma privatização ``selvagem" para atrair capitais, dizem os corifeus dos interesses constituídos, ávidos por realizar fáceis e polpudos ganhos patrimoniais.
Senhores ministros da área econômica: façam a coisa certa -empenhem-se em buscar consenso para a reforma tributária e para a reorganização federativa; trabalhem para reverter, o quanto antes, a deletéria sobrevalorização da taxa de câmbio.
Estes são os remédios corretos para os déficits interno e externo -a flexibilização dos monopólios públicos e as privatizações não devem ser encaradas como expedientes circunstanciais, mas como processos cuja lógica e ``timming" devem estar submetidos aos interesses da sociedade e ao desenvolvimento do país.
Por isso, é indispensável discutir antes, em cada caso, qual a configuração mais conveniente do ponto de vista da eficiência, competitividade e equidade social e qual a velocidade do processo de transição.
Estou convencido de que, no caso brasileiro, deve-se buscar um processo organizado de transição, com regras claras e com a construção de entidades regulatórias públicas fortes e capacitadas, ponderando-se que:
1) Numa economia aberta, é imperativo auferir economias de escala, de escopo e de integração vertical para assegurar o funcionamento competitivo das empresas de infra-estrutura, o que não recomenda a sua fragmentação.
Na maior parte dos casos (petróleo é o mais notório), é indispensável contar com a presença de ``global players", sob controle nacional, por razões de soberania, poder de barganha, garantia de suprimento do mercado a preços razoáveis e acesso ao aprendizado tecnológico.
O controle nacional não precisa, necessariamente, corresponder a empresas estatais puras ou a empresas controladas por grandes oligopolistas, devendo-se considerar a possibilidade de sociedades anônimas com controle pulverizado e gestão profissional, a partir da securitização dos ``passivos sociais" (INSS, FCVS, FGTS).
2) A participação privada deve ser estimulada, particularmente na oferta de novos serviços que não constituem monopólio natural (``monopólio natural" corresponde a uma atividade econômica de grande escala, indivisível, ou a uma infra-estrutura cuja rede física não pode ser economicamente duplicada, de forma a viabilizar a existência de apenas um supridor ou ofertante numa determinada região/mercado).
As áreas típicas de monopólio natural, particularmente as infra-estruturas de integração nacional e de conexão internacional, devem permanecer sob o controle de empresas públicas, configurando um modelo misto ou associativo (público-privado).
4) A transição do atual modelo ``estatal puro" para o ``modelo misto" não deve ser predatória para as empresas públicas: a) devem ser fixadas regras de compartilhamento de custos pelo uso e manutenção das redes básicas de interligação (i. e. elétricas ou de telefonia); b) a gestão das empresas estatais deve ser flexibilizada, sendo facultada a possibilidade de concorrer nas áreas não-monopolistas. Será desejável, na maioria dos casos, fixar prazos de transição para permitir a reengenharia das estatais.
5) As entidades de regulação devem ter força e meios para salvaguardar a equidade social -fixando obrigações e contrapartidas aos concessionários, em termos de metas para universalização dos serviços às populações de baixa renda; condições de preço, qualidade; suprimento a áreas remotas e/ou menos desenvolvidas.
6) Finalmente, é relevante assegurar que as receitas geradas no mercado interno se revertam numa proporção conveniente em atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, para suportar o avanço de nossa capacitação técnica, afastando o risco de nos transformarmos em simples usuários passivos, incapazes de gerar aqui empregos sofisticados e soluções adaptadas às nossas peculiaridades.
Está maduro o momento para discutir em profundidade o destino dos setores de infra-estrutura e utilidade pública -se o governo claudica lamentavelmente por falta de projeto estratégico, aumentam as responsabilidades da universidade, do Congresso, dos partidos e lideranças da sociedade.

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