São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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Impaciência versus complacência

EDUARDO GIANNETTI

Da semente da impaciência em fazer o bem pode brotar a mais pura flor do mal
A impaciência é um ânimo perigoso. Faz as coisas acontecerem, mas pode por tudo a perder. Não é só o corpo e o sistema nervoso que sofrem com ela. Também a mente e o pensamento com frequência padecem no altar da nossa pressa e irritação com a lentidão das coisas.
O bem e o mal bebem desta mesma fonte. Da ambição impaciente de acelerar o progresso e consertar o que está errado têm nascido alguns dos piores pesadelos coletivos da humanidade.
Considere, por exemplo, a atitude de Engels diante do atraso secular do México. Quando as tropas do general Winfield Scott renderam a capital mexicana, em setembro de 1846, o parceiro de Marx saudou a conquista do México pelos EUA com indisfarçável alegria.
Disse ele: ``Isso significa progresso para um país que até então só se ocupava de si mesmo, dilacerado por eternas guerras civis e impossibilitado de qualquer desenvolvimento, um país que não tinha outro futuro senão cair, no máximo, sob a vassalagem industrial da Inglaterra -progresso, dizemos, para um país que se vê arrastado para frente pela força da história".
Desfaçatez assim, só em Marx sobre a Índia ou Hegel sobre os silvícolas sul-americanos. Tudo, é claro, em nome da civilização contra a barbárie.
Que Engels tenha estado sempre do lado dos anjos e desejasse sinceramente o bem dos mexicanos, ninguém duvida. Mas, em sua ânsia de ajudar o progresso e acelerar o que imaginava ser o curso inexorável da história, ele acabou abraçando posições cuja truculência faria corar o mais desavergonhado lacaio do imperialismo ou funcionário pago do capitalismo globalizado. Da semente da impaciência em fazer o bem pode brotar a mais pura flor do mal.
Faço a reflexão acima pensando nos desafios do governo FHC e buscando razões para aplacar a minha própria ansiedade diante da lentidão do processo de mudança na economia brasileira.
Na conta da impaciência truculenta, vale lembrar, debitam-se a ruptura da democracia em 64, o ciclo dos planos de estabilização fracassados da última década -baseados na crença de que seria possível vencer a inflação eliminando os efeitos e não as causas- e o patético naufrágio do governo Collor.
O fato, entretanto, é que por mais que reflita sobre os riscos e perigos de se tentar acelerar demais as coisas; por mais que pondere sobre como é difícil, para quem está fora do governo, avaliar os limites e pressões de toda ordem que tolhem as ações do Executivo; e por mais que me esforce por aceitar de boa-fé os apelos das autoridades de que é preciso ter paciência com o ritmo das mudanças nos marcos da democracia, continuo com a forte sensação de que o governo FHC vem padecendo da falta de firmeza e determinação.
A impressão que se tem é que bastam duas palavras -invocadas persistentemente pelos próprios membros do governo- para resumir todas as iniciativas tomadas até aqui. Enquanto as medidas de política econômica são ``temporárias", as propostas de reforma estrutural baseiam-se no princípio da ``flexibilização". Se tirarmos tudo que é ``temporário" e ``flexível", o que resta?
Temporários são: os juros exorbitantes (desde a gestão do ministro Marcílio); a elevação das tarifas de ``apenas" 109 itens da pauta de importações; a velha e a nova política salarial, com cláusula de indexação, a ser enviada ao Congresso em junho; a provável renovação do FSE (o fundo ``emergencial" que duraria no máximo dois anos); e a volta do IPMF (será que continua ``P"?).
Paradoxalmente, a única coisa que a equipe econômica insiste em frisar que é por ``muito, muito tempo" é justamente aquela sobre a qual há fortes razões para se suspeitar que seja temporária -a banda cambial estreita.
Não é de hoje no Brasil que a emergência ganhou ares de normalidade e que o único traço permanente da política econômica é o caráter temporário das medidas adotadas. Infelizmente, contudo, nada até aqui sugere que a equipe econômica de FHC esteja conseguindo alterar este padrão.
Os candidatos à flexibilização são: os monopólios constitucionais do petróleo e das telecomunicações; o estatuto da estabilidade do funcionalismo; as diversas propostas de ``desconstitucionalização" (termo que honra a língua portuguesa e nossa cultura hibérica); e, ao que parece, até mesmo o tratamento a ser dispensado pelo Executivo aos bancos federais e aos estaduais sob intervenção do Banco Central.
Dois episódios recentes indicam que o governo FHC pode estar indo longe demais na flexibilização.
O primeiro foi o recuo no programa de reforma dos bancos federais -o não-fechamento de 31 superintendências regionais da Caixa Econômica Federal e a redução de 617 para 349 e depois para 255 do número de agências do Banco do Brasil ``passíveis de fechamento".
Como era de se esperar, o recuo do Executivo na frente federal abriu um precedente perigoso e já está tendo reflexos na negociação da solução para os bancos estaduais.
Tanto o Banespa, com uma dívida de R$ 12 bilhões do Tesouro paulista, quanto o Banerj, que perde R$ 900 milhões por dia, estão na fila da flexibilização. Enquanto esperamos, as negociações prosseguem e a intervenção temporária vai se prolongando...
O outro episódio foi a farsa da ``quebra do monopólio do gás canalizado". Na prática, o que houve foi uma flexibilização duvidosa, ou seja, apenas a transferência do monopólio sobre os serviços de gás para as estatais estaduais já instaladas.
O problema é que mesmo que o setor venha a ser aberto à iniciativa privada nos Estados, o simples fato de que a Petrobrás detém o monopólio da exploração, importação e transporte de gás no país praticamente inviabiliza a entrada de investimentos privados nesta área.
Esta questão, na verdade, afeta toda a proposta de flexibilização do governo. Como esperar, por exemplo, que uma empresa privada invista pesadamente em telefonia celular se, para poder operar, ela terá necessariamente que usar a rede física de telefonia local, que é de propriedade da mesma estatal que compete com ela na oferta de celular?
Como esperar que alguém invista na instalação de uma nova refinaria se, para processar petróleo, terá que comprá-lo da mesma estatal que, além de mandar e desmandar no setor, compete com ela na área de refino? É pior que jogar contra o dono da bola -é jogar contra o dono das regras do jogo.
Dois espectros do passado rondam a nau de FHC. A impaciência truculenta de Collor, de um lado, e a complacência pastosa de Sarney, de outro. A passagem é estreita. O perigo é passar longe dos monstros esfomeados nos rochedos de Cila, mas acabar se aproximando perigosamente do naufrágio nos rodamoinhos lodosos de Caríbdis.

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