São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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O último tango de Evita Perón

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Acaba de sair na França, pela editora Grasset, "Eva Perón" -biografia da mais famosa primeira-dama da Argentina, escrita pela escritora Alicia Dujovne Ortiz.
Evita, como ficou conhecida entre os argentinos, viveu entre 1919 e 1952 e participou dos momentos de ascensão política do general Juan Domingo Perón.
Depois de apoiá-lo através da rádio em que trabalhava, Evita acabaria se casando com Perón em 1946 (meses após sua eleição para a presidência da Argentina), partilhando de sua popularidade.
Perón governou o país entre 1946 e 1955 (quando foi derrubado por um golpe), voltando ao poder em 1973, até sua morte, no ano seguinte.
Leia, a seguir, entrevista concedida à Folha por Alicia Dujovne Ortiz.

Folha - O que a sua biografia traz de novo sobre Evita?
Ortiz - Mostra uma outra face da relação entre Perón e Evita. É a primeira vez que as testemunhas, por já estarem velhas e decepcionadas com o menemismo (o governo do presidente Carlos Menem), sugeriram que a relação entre os dois era terrível. Da parte de Perón, um grande maquiavelismo. Ele era o tipo do sedutor que só existe através do outro. Já Evita idealizava Perón.
Folha - O que a levou a escrever este livro?
Ortiz - Hector Bianciotti me telefonou encomendando a biografia para a editora Grasset e eu aceitei. Só depois, quando comecei a pensar no assunto, entendi que era fundamental para mim escrever essa biografia, que explica até a razão pela qual estou na França.
A minha família era anti-peronista, mas eu chorei quando Evita morreu, chorei porque havia no ar uma dor que uma criança de 12 anos não podia deixar de sentir.
Folha - Os títulos dos capítulos lembram títulos de capítulos de romance. Qual a relação entre a biografia e o romance?
Ortiz - Não quero fazer uma teoria geral sobre isso. Posso dizer qual é a minha relação com a biografia, um gênero que obriga a estabelecer um pacto com a verdade. Trata-se de uma limitação que, no meu caso, foi absolutamente liberadora. Tive que respeitar as múltiplas verdades de Evita e, com isso, me senti mais escritora do que nunca.
Folha - Você poderia falar do livro a partir dos títulos dos capítulos?
Ortiz - O primeiro capítulo se chama ``A Ilegítima". O pai de Evita teve cinco filhos com a mãe dela e depois desapareceu. A infância de Evita foi marcada por esse fato.
O segundo capítulo se chama ``A Atriz" e corresponde ao momento em que Evita chega em Buenos Aires, na capital, para se tornar atriz, vocação que era tão forte quanto a sua ambição.
O terceiro capítulo é ``A Amante", o momento em que Evita encontra Perón e ascende ao poder através da cama. O coronel é ministro da guerra e depois se torna vice-presidente da República. Ela o apoia com o seu poder radiofônico.
O quarto capítulo é ``Reconhecida". Corresponde à revolução de 17 de outubro de 1945, o momento em que Evita se sente reconhecida pelo povo e por Perón e estabelece com quem a legitima uma relação de reconhecimento. Evita teve sempre uma dívida com Perón, dívida que ela acabou pagando com o sacrifício do próprio corpo, da saúde.
O quinto capítulo é ``A Esposa" e diz respeito ao papel de esposa do presidente. Ela aí começa a forjar para si uma nova identidade. Tenta se vestir de uma outra maneira, porém comete erros terríveis. Evita, nessa época, assina Maria Eva Duarte de Perón, escrevendo Maria Eva Duarte com letrinhas minúsculas e Perón em letras garrafais.
O sexto capítulo se chama ``A Mensageira" e corresponde à viagem para a Europa. Dizia-se que Evita parecia um arco-íris de beleza. A gente se pergunta se Perón não teria aproveitado o arco-íris, que também era uma cortina de fumaça, para fazer Evita depositar na Suíça o fabuloso tesouro dos nazistas, o tesouro de Martin Borman. Seja como for, Evita se torna ela mesma durante a viagem. Atinge o nível estético, a beleza perfeita que farão dela uma personagem; nasce para si através da ida para a Europa. Os argentinos não se tornam eles mesmo antes de viajar para a Europa, para a Meca.
O sétimo capítulo do livro é ``A Fundadora". Corresponde à inauguração da ``Fundação Eva Perón", onde trabalhou sete anos durante 20 horas por dia, atendendo centenas de miseráveis, inaugurando clínicas, creches etc. São anos de um enorme trabalho. Evita, nesse período, usa um tailleur e os cabelos sempre presos, um coque que exprimia a sua maneira de existir, sempre centrada num mesmo ponto, no trabalho. Não há mais flutuação alguma, é uma Evita decidida.
O oitavo capítulo do livro é ``A Renunciadora" e diz respeito à mulher que admite se apagar porque esse é o desejo do seu homem, de Perón, que a inveja. Ela tenta se tornar vice-presidente da Argentina, mas Perón se opõe e ela renuncia. Nesse dia, começa a morrer, o câncer se torna fatal.
O último capítulo do livro se chama ``A Mártir, a Múmia, a Santa e a Avó". A mártir, porque a doença foi um sofrimento atroz. A múmia, porque ela foi mumificada -o seu cadáver foi roubado pela ``revolução libertadora", apunhalado e depois entregue a Perón, que teria dispensado o presente. A santa, porque o povo a santificou -em cada cidade argentina existia um altar para Evita e as velas estavam sempre acesas. A avó, porque, se Evita não tivesse renunciado a sua ambição pessoal, teria se tornado uma avó robusta.
Folha - Evita é filha ilegítima e Perón é filho só legitimado aos seis anos. Gostaria que você falasse da relação entre a falta do pai e o peronismo.
Ortiz - É evidente que o peronismo é uma procura do pai, como as outras ditaduras latino-americanas, com a diferença de que Perón era um pai sorridente e não um pai feroz. Na época se dizia que não era uma ditadura e sim uma ``ditablanda". A especificidade do peronismo é que, no topo do sistema, havia um casal. Foi a única vez que isso aconteceu na América Latina. Perón teve o mérito de valorizar o elemento feminino.
Folha - Evita veio do nada e se tornou a primeira dama da Argentina. Que fatores determinaram a ascenção dela?
Ortiz - A ambição e o encontro com o coronel, que procurava uma mulher do rádio. Perón conhecia bem a Itália mussoliniana e sabia da importância do rádio. Evita fez tudo que pôde para chegar até ele e, quando o encontrou, mostrou bem que não era somente a mulher do presidente. Evita sempre considerou que o amor era um meio para se tornar ela mesma.
Folha - Por que você escreve na biografia que a verdadeira história de Evita começa em 1947, quando ela volta da tournée pela Europa e retoma o seu trabalho?
Ortiz - Até então, ela tinha muitos problemas sociais, era muito desprezada pela oligarquia. As pessoa se riam muito da sua roupa, do seu penteado. A viagem para a Europa foi mágica, ela cumpriu um ritual de classe social, passou a se vestir como uma deusa. Quem fazia a roupa dela era Christian Dior. Ela tinha encontrado os grandes deste mundo que, em troca de um navio de trigo, se ajoelhavam diante dela. Em três meses, Evita havia se tornado uma grande dama e, ao voltar, se dedicou à única coisa que de fato a interessava: a ação social.
Folha - Você se reconciliou com Evita por causa da ação social?
Ortiz - Sim, como não respeitar uma mulher que trabalhou 20 horas por dia durante anos? A gente pode não estar de acordo com o princípio da distribuição direta, que se fundava numa ilusão econômica.
A abundância do peronismo era fictícia, não era um programa econômico racional e a prova disso é o que aconteceu depois. Só que Evita passava horas escutando os miseráveis e os atendia. Porque ela queria ser amada, claro, por razões de propaganda. Mas será que a gente se mata por razões de propaganda?
Folha - No fim da guerra, os industriais alemães e os chefes nazistas transferiram os seus bens para o exterior, onde criaram novas indústrias. Entre os países escolhidos estava a Argentina. Você poderia dizer por que as relações entre o nazismo e o peronismo foram tão estreitas?
Folha - Existe o pragmatismo de Perón. Ele dizia que a máquina alemã estava vencida, porém os técnicos e os cientistas que tinham construído a máquina estavam vivos. Todos os países do mundo queriam esses homens. Até aí, o cinismo de Perón é igual ao das grandes potências mundiais. Mas havia 4.000 criminosos de guerra nazistas em Buenos Aires, que foi a Meca dos criminosos de guerra. Perón considerava que o nazismo havia cometido excessos nos campos de concentração, mas que era uma saída. Essa é a parte da história que eu não posso aceitar, nem perdoar.
Folha - Os argentinos têm com o imaginário a mesma relação que nós brasileiros. Vêem nele a sua via de saída. Mas os argentinos são filhos do tango, que sempre faz a gente ouvir um gemido, um ai, e nós somos filhos do samba que exalta a alegria. Você acaso diria que o que nos diferencia é a nossa relação com a dor?
Ortiz - A alegria, no Brasil, vem da riqueza imensa que é a população negra e ela remete ao presente. A Argentina viveu até aqui voltada para o passado, para a terra perdida que não volta mais. Contudo, não se pode dizer que o samba salva o brasileiro e o tango, não. Todo gesto realizado com profundidade e de maneira perfeita pode nos salvar.

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