São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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Livro concilia relato romanesco e análise política da Argentina

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já em 1992, com ``Maradona Sou Eu", Alicia Dujovne Ortiz havia mostrado quem são os argentinos no imaginário deles próprios e no dos outros.
Agora, com a biografia de Evita, ``Eva Perón", escreveu um livro que nos interessa particularmente, porque mostra a relação entre o peronismo e a falta do pai -levando a refletir sobre o destino político do Brasil.
Podemos escapar ao autoritarismo e chegar a uma verdadeira democracia com tantas milhões de crianças a quem falta um pai? Adultos futuros a quem não será dado estranhar algum chefe de Estado que se apresenta como o pai e, como Getúlio Vargas, diga: ``A Lei ora a Lei...".
Mas ``Eva Perón" também deve ser lido pela história que a autora, com seu talento de romancista, narra divinamente bem, fazendo o leitor se entregar com tanta fé quanto a fé que levou Eva Maria Ibarguren, filha bastarda de um latifundiário e de uma mãe que teria sido trocada por um jumento, a se tornar Eva Perón e depois Evita, a madona de cabelos loiros.
Eva não nasceu de Perón, que utilizou incansavelmente a imagem carismática da esposa. Cada momento da vida daquela que um dia se tornaria Evita anuncia o que vai acontecer depois, como mostra a bela biografia de Dujovne Ortiz.
Bela pela arte de que é capaz uma escritora de verdade e não uma simples biógrafa. Exemplo de beleza é o fragmento sobre a transfiguração de Evita em loira:
``O ouro transfigurava esta morena de brancura opaca, conferia-lhe uma palidez estranha, que a sua doença futura tornaria sobrenatural. A transparência da sua pele era acentuada pelo contraste com a tintura, artifício aliás não dissimulado. As tintas não tendo ainda alcançado a perfeição de hoje, não se pretendia fazer a cor exagerada parecer natural. Era um ouro teatral e simbólico, cuja função era a mesma das auréolas e dos fundos dourados na pintura religiosa da Idade Média: a de isolar as personagens sagradas, mantê-las longe das cores da terra, do peso e volume, longe da carne opaca que ocupa um espaço e projeta uma sombra. Na Argentina dos anos 40, como na de hoje, as atrizes e as burguesas sonhavam em se tornarem loiras, adotarem a cor prestigiosa imposta pela civilização do Norte. Ser loura significava, e significa ainda, escapar à maldição do Sul."
Além de ser o grande texto escrito sobre Eva Perón, a biografia feita por Alicia Dujovne Ortiz é grande porque escapa aos limites usuais do gênero. Não procura, em momento algum, dizer ``A Verdade" sobre Evita, capturá-la numa imagem única.
Talvez porque o escritor saiba espontaneamente o que o psicanalista só sabe graças à teoria, ou seja, que ``A Verdade não existe" (Jacques Lacan) e que o Eu único é uma ilusão.
Descendente de imigrantes de várias nacionalidades, a escritora soube ainda evidenciar a importância das diferentes culturas na história de Evita, em que pesam, por exemplo, o machismo argentino e o voluntarismo basco -capaz de transformar uma provinciana inculta na primeira dama do país.
``Last but not least", esta biografia surpreende por certas considerações luminosas. ``Cada um comete o erro que lhe está destinado", afirma Dujovne Ortiz, referindo-se tanto aos intelectuais que, em 1945, na Marcha da Constituição e da Liberdade, só souberam se opor a Perón com a Marselhesa, cantando numa língua que não era a do povo, quanto aos operários que erraram elevando a chefe supremo da nação um pai que transformou a oitava potência mundial num país quase subdesenvolvido.

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