São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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Todas as torres de Babel

ANTONIO CICERO; WALY SALOMÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A explosão de um edifício na pacata cidade de Oklahoma foi precipitadamente interpretada como um atentado perpetrado por alguma organização terrorista árabe. Tratar-se-ia de uma manifestação extrema de conflito intercultural. Os grupos árabes teriam sido movidos pela necessidade de fazer a guerra santa, o ``jihad".
Logo em seguida, porém, verificou-se que, na verdade, o atentado havia sido cometido por seitas para-militares de neo-nazistas americanos. A intolerância, como no grande filme de Griffith, era na verdade genuinamente ``made in USA".
Enzensberger, dia 16
O eterno bode expiatório do inimigo externo abandona o proscênio, que passa a ser ocupado por inimigos internos, a agitar o fantasma liberticida da guerra civil. Ora, ``Observações sobre a Guerra Civil Molecular" é o título da palestra do pensador alemão Hans Magnus Enzensberger, que abrirá o Banco Nacional de Idéias deste ano, no dia 16 de maio.
Mas a prévia falsa imputação do crime de Oklahoma a inimigos externos demonstra que a rede complexa de preconceitos e xenofobia não se restringe a alguns poucos -e talvez nem tão poucos- sectários.
Nesse contexto não há como não lembrar as declarações do secretário geral da Otan e do ministro da Defesa dos Estados Unidos de que, após a queda da União Soviética e o fim da ameaça comunista, o Islã representa o perigo de amanhã. Sendo assim, não é tão surpreendente que o líder islâmico sudanês Hassan el-Turabi, levantando a suspeita de que está em preparação uma nova cruzada, conclame os muçulmanos de todo o mundo à ``resistência contra a agressão do Ocidente" e pregue ``o fim do que chama de `cultura Coca-Cola' ".
Todorov, dia 17
Mas pinçamos esses exemplos de intolerância recíproca no meio de centenas ou quiçá milhares que nos são oferecidos pelo espetáculo do mundo. A vitrine de exemplos de conflitos interculturais nos nossos dias é inesgotável. É por isso que estamos convencidos de que poucas questões têm tanta atualidade explosiva quanto aquelas que se referem ao ``Multiculturalismo, Transculturalismo e Sincretismo Cultural", temas do ciclo 1995 do Banco Nacional de Idéias. Uma sinopse das nossas intenções já é dada pelo próprio título do ``paper" com cuja leitura o ensaísta franco-búlgaro Tzvetan Todorov nos brindará no dia 17 de maio: ``O Diálogo das Culturas".
O ``multiculturalismo" quer assegurar a cada povo a sua singularidade cultural, respeitando suas tradições religiosas e seus costumes políticos. A cultura é tomada como a unidade estilística de todas as expressões vitais de um povo que é seu suporte e produtor. O multiculturalismo se preocupa em assegurar que as diferentes etnias sejam capazes de conviver pacificamente, ao mesmo tempo em que conservem as suas especificidades, isto é, em que se mantenham, na medida do possível, autênticas e fiéis às suas raízes.
Mas, em última análise, as preocupações multiculturalistas, com um zelo hostil ao crivo crítico externo, mantêm formações sociais arcaicas, tribais ou feudais, com seu lastro de preconceitos seculares e não raro, xenófobos. Linguagens estanques acabam resultando na exclusão de canais de comunicação e na exaltação máxima dos ``patois" locais.
Para transculturalistas e sincretistas culturais, isso não passa de apartheid benévolo. Com o abandono total e absoluto de qualquer cânone universal, vivenciamos verdadeiros becos sem saída, de matizes francamente caricaturais. Alguns afirmam que um par de botas vale tanto quanto as obras completas de Shakespeare e outros, que a tensa e complexa descrição da vida do Sul dos Estados Unidos nos romances cheios de som e fúria de William Faulkner, é mera reedição da domesticada Cabana de Pai Tomás.
O grande teórico do transculturalismo, Wolfgang Wesch, afirma com razão que nossos conceitos de culturas são espartilhos que foram explodidos por nossas culturas. O transculturalismo refuta o insulamento e a autoctonia cultural do multiculturalismo, que considera como uma espécie de ``racismo cultural", mesmo quando nega o racismo étnico-biológico. Sem pretensão alguma a uma sociedade ``autêntica", os transculturalistas almejam uma sociedade polimórfica.
Toma-se um Suzuki para visitar-se uma exposição de Rodin pela manhã, lê-se um artigo de ``Der Spiegel", almoça-se -no restaurante de um shopping center, ao som de um coro de mulheres búlgaras- ``sushi" regado a Chablis, Heineken ou caipirinha, pratica-se de tarde ``jogging", capoeira e sumô, faz-se à tardinha meditação zen nas ondas da ``world music", à noite põe-se um blazer de Armani, dá-se uma esmola para o mendigo ``rastafari" que parece coreografado por Pina Bausch, toma-se dois ``margueritas" antes do ``cous-cous" do Maghreb, assiste-se a ``Laberinto de Pasiones" ou ``Prêt-à-porter", cumpre-se todas as obrigações dos orixás e zapeia-se pelos canais da Net antes de se entregar aos braços de Morfeu.
É o reinado da estética picotada do clip da MTV. A ``transculturalidade" quer significar isso: que deixamos para trás as concepções clássicas; e que as novas formas de vida e cultura naturalmente atravessam essas velhas formações. No entanto, do ponto de vista crítico dos multiculturalistas ou dos sincretistas culturais, isso não passa do elogio do turismo cultural. O transculturalismo seria uma espécie de perfumaria, sofrendo a mesma fragilidade conceitual da sua irmã siamesa, o pós-modernismo.
É assim que, enquanto o multiculturalismo e o sincretismo cultural se interessam pela esfera de produção de cultura, o transculturalismo, segundo seus críticos, se atém à esfera do consumo cultural. Nessa perspectiva ácida, uma passagem ida-e-volta para o Epcott Center representaria um curso intensivo de transculturalismo.
Darcy, dia 18
O sincretismo cultural pode ser descrito como a tese de que a mestiçagem racial e cultural é capaz de produzir um amálgama que já não pertence a nenhuma das raças ou culturas de onde provém. Trata-se do modelo tradicionalmente atribuído ao Brasil. Stefan Zweig, refugiado do nazismo, afirmava em seu livro ``Brasil, País do Futuro", que os brasileiros tinham uma lição a dar ao mundo. Desde a colônia, somos uma nação-modelo de amálgama, ou seja, de uma mistura de elementos que, embora diversos, contribuem para formar um todo indecomponível.
Mas, como não podia deixar de ser, a assim denominada ``solução brasileira" é hoje objeto de cerrada crítica. Alega-se que toda aparente harmonia social, racial ou cultural consiste numa comunidade ilusória, construída sobre a base do aplastamento e do recalque dos conflitos, das tensões e das contradições reais. Nesse sentido, recentemente, em entrevista a Marilene Felinto, da Folha, o cineasta afro-americano Spike Lee declarou que, quando um brasileiro se define como mulato ou mestiço, no lugar de branco ou preto, o faz por ser culpado ou vítima de racismo camuflado.
No entanto, essa mesma crítica não estará elevando ao absoluto o modelo multiculturalista de outros países, ignorando as especificidades brasileiras? O desenho fundacional dos Estados Unidos, por exemplo, já pressupunha a discriminação dos elementos e a conservação de sua pureza. No caso brasileiro, muitas vezes não se pode separar a contribuição ibérica da indígena ou da africana. Por que consideraríamos natural a cerca segregacionista? Sob a capa multiculturalista não estará aqui restaurada a máxima teuto-puritana segundo a qual ``Deus criou o branco e o preto mas o diabo forjou o mulato"?
O valor e o sentido das culturas talvez se encontrem, ao contrário, na fusão e fecundação recíproca. Rejeitar o sincretismo cultural a partir da aplicação mecânica de esquemas dos movimentos anti-racistas norte-americanos talvez resulte, neste e em muitos outros casos, em se jogar a criança fora junto com a água suja do banho. Para defender a posição do sincretismo cultural convidamos o seu brilhante representante-mor, o antropólogo Darcy Ribeiro, que falará no dia 18 sobre a sua concepção do povo brasileiro.
Walcott, dia 19
Como conclusão, nada melhor do que a linha do poeta caribenho, detentor do Prêmio Nobel de 1992, Derek Walcott, cujas palavras escutaremos na grand finale do dia 19 de maio: ``I had no nation now but the imagination" (eu não tinha nação agora além da imaginação).

ANTONIO CICERO é poeta, compositor e ensaísta
WALY SALOMÃO é poeta e ensaísta; é um dos curadores, com Antonio Cicero, do evento Banco Nacional de Idéias

INSCRIÇÕES: O evento Banco Nacional de Idéias acontece de 16 a 19 de maio, em São Paulo, na sala 3 do Espaço Banco Nacional de Cinema (r. Augusta, 1475, 011 288.6780, zona central). Os ingressos para cada palestra custam R$ 5,00 e já podem ser adquiridos no local

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