São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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ECO-LOGIA

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Apesar deste inconveniente, aceitamos mais ou menos esta técnica nos jornais, pois sabemos -é uma espécie de convenção- que os jornalistas nos dão um espectro aproximativo das posições existentes. Sabemos também que o jornalista não fez nem pretendeu fazer uma verdadeira sondagem, nos contentamos com ele mostrar pelo menos algumas opiniões sobre o tema. Na televisão a força do exemplo é muito maior. Quando você vê alguém dizer de cara: "É assim, fica difícil não pegar isso como expressão de verdade e opinião públicas.
Folha - A imagem tem um poder diferente...
Eco - Talvez tenhamos elaborado com o tempo uma atitude mais crítica em relação à coisa escrita. Ou, então, as pessoas que lêem a imprensa são uma minoria cultural, mais crítica do que as pessoas que vêem televisão. Mas há, em ambos os casos, uma passagem contínua entre tipos e casos (exemplos): a televisão nos apresenta continuamente casos como se fossem tipos. Nos mostra um cavalo como se fosse "o cavalo.
Folha - O problema é que ``o cavalo" não existe.
Eco - Existe, em um certo sentido, na cabeça de cada um, sem ser uma idéia platônica; por exemplo, Karl Popper diria que existe no que ele chama de terceiro mundo (epistemológico). É por isso que sabemos reconhecer dois cavalos como sendo cavalos, embora de cores e raças diferentes.
Folha - Sim, certo, mas não dá para apresentá-lo.
Eco - Certo, não se pode apresentá-lo. Mas, com o "exemplum, é esta a impressão que é dada. A etimologia de idéia, aliás, é algo que está sendo visto. É a idéia da mitologia grega: te mostro a imagem de deus. O fato de que fosse meu amiguinho, com quem trepo todos os dias, não importa; no momento, eu, Policleto, esculpo a idéia.
Folha - Mas como poderia ser diferente? A opinião pública é uma suposição que necessariamente todos invocam e nada e ninguém encarna. Ela é também um campo de conflito, de debate, onde cada um, para prevalecer, se atribuirá inevitavelmente a qualidade de representante da opinião geral.
Eco - A única solução é tomar a opinião quantitativamente. Uma maioria de piemonteses decidiram votar no Polo (coalisão de forças políticas que elegeu Silvio Berlusconi, na Itália). Não é o ideal, mas, pelo menos quantitativamente, você pode contá-los.
Quem invoca a maioria diz: esta é a vontade geral. Contanto, sabemos que se trata só de 50% dos piemonteses mais um. Ora, nenhuma quantidade tem o poder de uma qualidade comum, de uma vontade comum. O recurso à qualidade é sempre perigoso. A quantidade é sem retórica, é uma matemática.
A matemática da quantidade diz que a maioria dos italianos quis, há um ano atrás, que Berlusconi fosse eleito. Respeitar o direito da maioria não significa pensar que a maioria escolheu direito. Eu acho que escolheu mal. Parece que, nos EUA, a maioria é favorável à pena de morte, embora saibamos que eles estão errados. De qualquer forma, com o sistema democrático (que, como dizia Churchill, é muito imperfeito, mas não temos nada melhor), reconhecemos o direito de uma maioria com a qual não concordamos, sem nos iludirmos que estejamos assim obedecendo a uma mítica ``vontade geral".
Além disso, é sempre possível pegar a calculadora e refazer a conta. Dobrar-se à vontade de uma maioria quantitativa é aparentemente o único jeito de encontrar um acordo, sem que seja preciso impor ou fingir uma vontade de todos.
Folha - Mas, ao mesmo tempo, esta possibilidade de apresentar um exemplo com força qualitativa é também o caminho pelo qual a opinião pública pode vir a mudar. Pois a opinião é um teatro, onde cada um pode eventualmente se bater, tentar fazer prevalecer suas idéias. Se se vai à televisão, ou mesmo à imprensa, e declara o que o sr. acaba de declarar, isto também é um "exemplum.
Eco - Ok, certo, podemos dizer que, de fato, não há nada de novo. Mesmo nas democracias antigas havia a retórica, que era a arte de convencer, de produzir opinião pública. A democracia é a ditadura da maioria e o uso da retórica para transformar a opinião pública.
Hoje, nossa retórica é diferente. A retórica da televisão é provavelmente mais perniciosa que a retórica falada, a causa da facilidade, como disse, de transformação de casos em tipos, e também pela quantidade de pessoas que podem ser convencidas. Por isso mesmo, por esta novidade retórica que altera o debate na opinião pública, pode estar acontecendo que o sistema democrático inteiro entre em colapso. Por outro lado, quando, por exemplo, vota menos da metade da população, e para candidatos que foram previamente escolhidos por grupos de poder, que democracia é esta? É uma ficção, já do ponto de vista quantitativo.
Folha - Sim, mas o que salva a democracia neste caso é que, no final das contas, de qualquer forma, o candidato eleito não pode fazer tudo o que quer. Justamente, não só os grupos de poder, mas a própria opinião pública, por incertas que sejam suas manifestações, ainda controla o exercício do poder.
Eco - Sim, a fonte da autoridade não é mais tão democrática, mas o ``output" é democrático.
Folha - Voltando e confirmando o que o sr. dizia antes, mesmo em uma sociedade individualista não poderia haver democracia sem alguma forma de comunidade, alguma noção do bem.
Eco -Em uma grande democracia, como os EUA, a Rússia hoje, ou mesmo a Europa amanhã, torna-se difícil encontrar um bem comum. Há uma confederação de bens comuns. Alguns são reconhecidos por todos, mas não está dito que sejam bens comuns. O tamanho e a complexidade do sistema nos torna incapazes de avaliar o bem comum.
A preservação da Amazônia parece poder ser um bem comum, mas para alguns -aqueles, aliás, que estão justamente mais perto da floresta- é difícil entender a necessidade de preservar o ambiente. Dirão que há árvores suficientes para continuar cortando ainda durante 10 mil anos, ou então dirão que não se importam, que querem seu bem agora. Não se importam com as pessoas do próximo milênio. É difícil elaborar a idéia de um bem comum.
Folha - E, ao mesmo tempo, a retórica das mídias criaria, a seu ver, falsas convergências. Pessoalmente, não sou tão pessimista quanto aos efeitos desta retórica. Me preocupa mais o recurso à tradição como possível terreno atávico comunitário.
Eco - Este é um dos recursos fascistas. Outro é a teoria do complô. Encontra-se um bem comum facilmente, por exemplo, quando se isola um inimigo comum.
Folha - Recentemente, o sr. disse ao jornalista francês Roger Pol Droit -e eu me manifestei por escrito contra esta idéia-, que o corpo podia servir de fundamento de valores universais. Não é um pouco triste e de qualquer forma problemático que deleguemos à fisiologia a tarefa de fundar nossos valores?
Eco - Mas o corpo concerne também à alma das pessoas.
Folha - A liberdade de palavra não é a mesma coisa que a possibilidade fisiológica de fonação.
Eco - Tomo o corpo como ponto de referência.
Folha - Sim, mas os valores de nossa cultura não são derivados da fisiologia, não derivam do corpo enquanto tal.
Eco - Se não tenho a língua, não posso falar. Então, não devem me cortar a língua.
Folha - Está bem.
Eco - Do mesmo jeito, não devem me cortar a mão etc. Uma vez que me deixaram tudo isso, devem me deixar usá-lo, na medida em que se chegue a um acordo. Porque não devem me impedir de cagar, mas se eu venho cagar em sua casa, não está certo. Então, fazemos um acordo, eu não cago em sua casa, você não caga em minha casa e nenhum de nós caga no meio da rua. Também sobre o uso da língua. Eu não devo ir contando por aí que sua irmã é uma puta e reciprocamente.
Folha - E também não podemos dizer os dois, de uma mulher que passa pela rua, que é uma puta.
Eco - Um acordo procurando garantir aos dois e a todos o máximo uso possível da língua.
Folha - Isto é o legado básico da filosofia contratualista ocidental moderna. Minha crítica não é com estes valores. Só não acredito que sejamos capazes de derivá-los e justificá-los por algo real, como o corpo. O direito não é natural, e não é mais divino. Portanto, é necessariamente contratual; e não se tem como deduzir da fisiologia do corpo uma universalidade do direito.

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