São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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Mais ricos e mais pobres votam em Menem

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

O ``menemóvel", o microônibus adaptado com o qual o presidente Carlos Saúl Menem percorre Buenos Aires em campanha eleitoral, dispara a todo volume a marcha peronista, o hino do movimento pelo qual Menem é candidato.
O disco é velho, ainda de vinil, 33 rotações por minuto. Mas velho mesmo, totalmente anacrônico, é o segundo verso da marcha que sai do ``menemóvel".
Diz, em alusão ao general Juan Domingo Perón (três vezes presidente, morto em 1974): ``Por esse grande argentino/que soube conquistar/a grande massa do povo/combatendo o capital".
Combatendo o capital? Memórias dos velhos tempos em que o peronismo nasceu, com suas práticas estatizantes e nacionalistas.
É verdade que a memória desses tempos ainda assombrava os donos do capital na campanha anterior, em 1989.
No bairro da Recoleta, o ``point" da juventude dourada de Buenos Aires (e também de dourados não tão jovens), a piadinha preferida da época era assim:
Os pesquisadores se espantavam com o fato de que jovens e adolescentes declaravam voto a favor de Menem. Quando perguntavam a razão, a resposta era esta: ``Se o Menem ganha, papai se decide de uma vez a mudar para Miami com a família toda".
Menem ganhou e os ricos não só não mudaram para Miami como agora, seis anos depois, tentam pavimentar o caminho para a reeleição do presidente.
O empresariado despejou cerca de US$ 9 milhões na campanha de Menem, quase o dobro dos US$ 5 milhões que deu aos dois outros principais candidatos, somados.
Não é só dinheiro que os ricos dão a Menem. É um apoio desbocado.
``A continuidade por quatro anos mais é boa, e o mercado estará mais tranquilo se ganha Menem", diz Héctor Randerath, diretor do Deutsche Bank (alemão).
Nem no Brasil, em que sabidamente banqueiros e empresários apoiaram Fernando Henrique Cardoso, se chegou a esse ponto de transparência.
Banqueiro algum, menos ainda estrangeiro, permitiria que aparecesse, com seu nome, uma frase semelhante.
O fato de Menem levar agora o voto dos ricos e o dinheiro do empresariado é fácil de explicar. O candidato Menem de 1989 prometeu um ``salariazo". O presidente Menem entregou uma verdadeira revolução neoliberal.
Privatizações (US$ 24 bilhões arrecadados), abertura da economia (as tarifas de importação caíram de mais de 50%, na média, para cerca de 10%), enxugamento do Estado. É música aos ouvidos dos homens de negócio.
Mas se dependesse só dos votos da Recoleta, Menem não se elegeria nem vereador.
Raúl Alfonsín, o antecessor de Menem e seu rival político, admite que Menem leva os votos dos de ``muy arriba" e dos de ``muy abajo". Entenda-se: os de cima (os ricos) e de baixo (os muito pobres).
Também é fácil explicar porque o presidente tem tantos votos entre os pobres. Ao derrubar a inflação dos 4.924% de 1989, quando assumiu, para os 3,9% de 1994, Menem promoveu automaticamente uma enorme redistribuição de renda em favor dos mais pobres.
São os que não têm acesso aos mecanismos financeiros que permitem ao menos contornar os efeitos nefastos da inflação elevada.
Relatório do Banco Mundial de 1993 mostra que a renda média argentina subiu 49% desde 1989. Mas os 10% mais pobres melhoraram sua posição relativa (ganharam 33 pontos percentuais no bolo da renda nacional) mais do que os 10% mais ricos (13 pontos).
O embaixador argentino no Brasil, Alietto Guadagni, calcula em US$ 14 bilhões o volume de recursos transferidos dos mais ricos aos mais pobres.
É quase o mesmo que o governo brasileiro diz ter ocorrido no Brasil, na esteira do Plano Real, ou seja, uma transferência de US$ 15 bilhões para os mais pobres.
Na Argentina, no entanto, esse bolo vale mais, porque é rateado por bem menos gente (a população é quase cinco vezes menor).
É natural, por isso, que as pesquisas mostrem uma intenção de voto em Menem suficiente para, eventualmente, dar-lhe a vitória no primeiro turno, embora a margem de erro autorize a supor também a necessidade de um segundo turno.
Essa dúvida estatística combina com a frase e declaração de voto do garçom Júlio Hernández, de Los Inmortales, tradicional restaurante central.
``Eu voto em Menem, mas não como enrolado. Falta trabalho e os salários estão baixos", afirma Hernández.
Os salários estão de fato baixos. Mesmo tendo crescido 49% entre 1989 e 1993, a renda média do argentino ainda é 30% inferior à de 1980, sempre segundo dados do Banco Mundial.
O que Menem fez, portanto, foi tirar a Argentina do fundo do poço em que caíra, enterrada pela ditadura militar do período entre 1976 a 1983 e pelo fracasso do governo Raúl Alfonsín.
Faltam de fato empregos. O desemprego aberto afetava, ao terminar 1994, 12,2% da população economicamente ativa, recorde histórico.
Os subempregados são mais 10,4% da força de trabalho total. Resultado: quase um de cada quatro argentinos ou não tem emprego ou tem emprego precário.
As autoridades dizem não entender como um país com tão forte crescimento econômico (33% desde que Menem assumiu) tenha simultaneamente feito aumentar o desemprego (era de 6,8% em 1989, em plena hiperinflação).
Parte da explicação está no enorme aumento de produtividade desta nova Argentina: na indústria, ela aumentou 42% desde 1991, quando a média mundial é de 2% ao ano de ganho de produtividade.
Traduzindo: a indústria argentina produz hoje a mesma coisa que em 1991, mas com 42% menos empregados.
Consequência inevitável, do ponto de vista anímico: o medo de perder o emprego impregna o cotidiano, em especial da classe média, a que se recuperou comparativamente menos dos desastrosos anos 80.
``A classe média, sobretudo da capital e da Grande Buenos Aires, está totalmente contra Menem. É perigoso para um futuro governante a pouca simpatia entre a classe média porque é mais ativa politicamente do que as outras duas", comenta o conservador ``Âmbito Financiero", especializado em economia.
Por megalomania ou por ter a mesma sensação, Menem prometeu, no comício de encerramento da campanha na capital, já na madrugada da quinta-feira, colocar a Argentina entre ``os dez melhores países do mundo" ao terminar seu novo mandato.
É um aceno à alma nostálgica do portenho (quem nasce na cidade de Buenos Aires), marcada pelo fato de que, na virada do século, a Argentina era a sexta nação do mundo em renda por habitante.
Tempos tão fora de moda quanto a marchinha que louva Perón e seu ``combate ao capital", quando cantada por seus herdeiros.

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