São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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um filósofo

CAIO TÚLIO COSTA

O Estado brasileiro passou do estado de coma. A sociedade
sequer se deu conta
Uma entrevista do filósofo alemão Jürgen Habermas, 66, concedida na cidade de Starnberg, publicada no final de abril no caderno Mais!, acendeu uma luz na escuridão intelectual.
Quando todas as interpretações sobre o nosso macrocotidiano se mostram muito simplistas, ou então incompreensíveis; quando os intelectuais se abstraem em questões tangenciais; quando parecem não dar mais conta das situações criadas a partir da ruína da idéia do comunismo (e também da do próprio socialismo), surge uma voz poderosa para pensar sobre coisas que ninguém conseguia definir com clareza.
Correndo o risco da vulgarização, inerente ao jornalismo, atrevo-me a resumir o que ele disse de fundamental. Com você, algumas idéias de Habermas:
* Após a Segunda Guerra, o ocidente conseguiu êxito na regulamentação e na domesticação da economia capitalista.
* Este êxito aconteceu dentro da ``moldura" do Estado nacional. Ou seja, os diversos aparelhos do Estado permitiram aos governos nacionais a implementação de políticas sociais e econômicas. Explicação para o grande desenvolvimento de países como Alemanha, Suécia, EUA, França, Inglaterra...
* Nos anos 80 tudo mudou. Dali pra cá acabou o Estado nacional.
* Isto aconteceu porque o Estado deixou de controlar as condições produtivas de sua própria economia.
* ``Temos hoje uma globalização dos mercados financeiros que afeta as condições de produção, provocando com isso uma generalização e globalização da própria produção."
Estes trechos formam o núcleo da fala do filósofo na entrevista na qual lamenta não ter estudado economia.
Envereda pela teoria da dependência cuja formulação contou com a ajuda de Fernando Henrique Cardoso. Habermas considera-a contestável porque o hemisfério Norte não precisa mais, ``verdadeiramente", explorar o Sul para sobreviver.
Habermas discorre sobre a necessidade de teorias capazes de analisar as novas situações como as que estão na base das ``subclasses", aquelas que não têm mais nenhum potencial de ruptura, que buscam a autodestruição. Essas subclasses estão nas revoltas atuais da sociedade norte-americana e estão também nas chacinas em São Paulo ou no Rio. Soma-se à falência do Estado o desaparecimento das ideologias, daí o fim do potencial das rupturas. O indivíduo revolta-se sem ideais, é a revolta pela revolta, vergonha das finadas ideologias. Há de se explicar tudo isso para entender o futuro, se é que ele existe enquanto possibilidade de bem estar.
No Brasil, então, a falência do Estado, como notou a Folha em editorial comentando a entrevista de Habermas, não está só nas mesas dos bancos internacionais ou na força no mercado de consumo. Está na legislação cartorial, na impotência do Exército face ao narcotráfico ou na falência da educação e da saúde.
O fim do Estado, acrescento, está também na violência das torcidas de futebol, no tiro perdido, no rosto do menino que pede trocado no farol, na fila do Inamps, no ônibus lotado, no trem apodrecido, nos baixos dos viadutos, nos buracos nas estradas, na sonegação, no jeitinho, na vantagem a qualquer custo, nas filas nos bancos, nos lucros exorbitantes, nos juros extorsivos...
O Estado brasileiro passou do estado de coma. A sociedade sequer se deu conta. Ao governo e ao Congresso este diagnóstico não interessa.
Depreende-se do que diz Jürgen Habermas que mudanças são necessárias sim, mas muito, muito maiores do que se pode imaginar.

Ilustração: ``Leo não consegue mudar o mundo", de Leonilson. Tinta acrílica sobre lona, 1989

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