São Paulo, domingo, 14 de maio de 1995
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"Minha mãe levava surra de chibata"

"Ih, que chateação, é a primeira reação de tia Dita. Para ela, "essas entrevistas não ajudam nada o Cafundó. Aos 112 anos, filha de escravos, Benedita Pires deve saber do que fala.
Sua mãe era a escrava Antônia, filha do escravo que deu origem a Cafundó. Tia Dita, como é conhecida, nasceu e sempre viveu na comunidade.
Segundo a líder dona Cida, sua longevidade se deve ao fato de ser solteira. "Quando quis casar, meus pais não gostaram do namorado, conta tia Dita. "Fiquei como Deus quis.
Ela é protestante há 26 anos. "Tenho a `Bíblia', mas não sei ler, diz. "Você já leu sobre a `barca de Noér'?, pergunta. "Pois a nova liquidação do mundo está perto. Quantos séculos faltam para o ano 2000?
Mora sozinha, não sai há dois anos, está com catarata e surdez parcial. Tem boa memória: "Vi minha mãe levar surra de chibata do senhor. Tia Dita nasceu em 1883, depois da Lei do Ventre Livre (1871), mas antes da Abolição (1888).
Ela não sabe quem é o presidente do Brasil -"parece que é um doutor-, mas recorda de "Montoro e Kércia. Levaram a gente para uma festa no São Paulo, diz. "Ê, São Paulo véia... Pra caipira não dá.
Mostra uma foto carcomida na parede de seu casebre. "O alto é meu irmão, o baixo, meu pai, ainda no cativeiro. Tia Dita gosta de falar de "antes.
"No tempo que tinha rei, meu pai dizia que era tudo sim, sim, não, não. Hoje é lero-lero, fica só no sarapatel. Termina: "Não vejo a hora de Deus me levar deste mundo ingrato".

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